Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 10

Monstros, só monstros poderiam ser capazes de tal crueldade. E se o carro não fosse velho? Não queria pensar mas não conseguia não pensar que se o carro fosse novo e bonito como o Audi do meu tio Augusto talvez a morte do Zé Manuel e do Hélder fosse mais compreensível. Mas os que os tinham assassinado nunca poderiam deixar de ser monstros. Era tão doloroso não esquecer o Zé Manuel e o Hélder, que os esqueci assim que pude. Não me lembro das caras deles, de como se riam comigo, de como dançavam, da forma que falavam, dos seus sonhos ou medos. Talvez o primeiro passo nesse caminho para o esquecimento tenha sido transformar a morte deles na medida que graduava o horror da guerra em Luanda. Bastava dizer que dois amigos meus tinham sido assassinados para todos perceberem que eu vivera numa guerra a sério. E tenho quase a certeza que, para mim, o Zé Manuel e o Hélder se tornariam apenas nessa medida do horror da guerra se não fossem irmãos do Rui, o primeiro rapaz com quem dancei slows, os meus dez anos e os treze dele a tropeçarem uns nos outros, nas festas, ao lado dos pares mais velhos, como se estivéssemos a inventar a felicidade. Nos primeiros anos da Metrópole ia perguntando aos ex-vizinhos que encontrava na filas da Caritas e da Cruz Vermelha ou noutros ajuntamentos de 10 retornados se sabiam do Rui cujos dois irmãos constaram da lista dos desaparecidos. O Rui-que- dançava-comigo só era conhecido por um pequeno grupo de pessoas, mas todos saberiam quem era o Rui-a-quem- assassinaram-dois-irmãos. De facto, muitos tinham ouvido falar no caso e poucos eram os que não tinham informações sobre eles. Os irmãos tinham acabado por aparecer e toda a família tinha ido para a África do Sul. O Rui estava em Luanda à espera dos irmãos. A mãe do Rui tinha-se suicidado na véspera de embarcar. O Rui estava no Barreiro. No Minho. No Algarve. As informações eram tantas e tão contraditórias e eu tão pequena e incapaz, que nunca encontrei o Rui. Não esquecerás que o tempo tudo desvanece. Deixei de procurar o Rui e passaram 36 anos sem que eu tivesse sabido o que realmente lhe aconteceu. Decidi, no entanto, que a personagem principal do romance em que falasse da descolonização, da ponte aérea, da vinda e dos retornados, seria um rapaz e chamar-se-ia Rui. Não por ter dançado os primeiros slows com o Rui, mas por ter usado muitas vezes o sofrimento do Rui para aliviar o meu. Era horrível viver sem dinheiro e sem nada na Metrópole, mas a minha irmã não tinha morrido, ninguém da minha família tinha morrido. O sofrimento dos outros alivia o nosso. Fazemos tudo por comparação. Até sofrer. Bastante mais tarde, já a meio da escrita do romance, percebi que a escolha do nome tinha sido acertada