Monstros, só monstros poderiam ser capazes de tal
crueldade. E se o carro não fosse velho? Não queria
pensar mas não conseguia não pensar que se o
carro fosse novo e bonito como o Audi do meu tio
Augusto talvez a morte do Zé Manuel e do Hélder
fosse mais compreensível. Mas os que os tinham
assassinado nunca poderiam deixar de ser
monstros.
Era tão doloroso não esquecer o Zé Manuel e o
Hélder, que os esqueci assim que pude. Não me
lembro das caras deles, de como se riam comigo,
de como dançavam, da forma que falavam, dos
seus sonhos ou medos. Talvez o primeiro passo
nesse caminho para o esquecimento tenha sido
transformar a morte deles na medida que graduava
o horror da guerra em Luanda. Bastava dizer que
dois amigos meus tinham sido assassinados para
todos perceberem que eu vivera numa guerra a
sério. E tenho quase a certeza que, para mim, o Zé
Manuel e o Hélder se tornariam apenas nessa
medida do horror da guerra se não fossem irmãos
do Rui, o primeiro rapaz com quem dancei slows,
os meus dez anos e os treze dele a tropeçarem uns
nos outros, nas festas, ao lado dos pares mais
velhos, como se estivéssemos a inventar a
felicidade.
Nos primeiros anos da Metrópole ia perguntando
aos ex-vizinhos que encontrava na filas da Caritas
e da Cruz Vermelha ou noutros ajuntamentos de
10 retornados se sabiam do Rui cujos dois irmãos
constaram da lista dos desaparecidos. O Rui-que-
dançava-comigo só era conhecido por um pequeno
grupo de pessoas, mas todos saberiam quem era o
Rui-a-quem- assassinaram-dois-irmãos. De facto,
muitos tinham ouvido falar no caso e poucos eram
os que não tinham informações sobre eles. Os
irmãos tinham acabado por aparecer e toda a
família tinha ido para a África do Sul. O Rui estava
em Luanda à espera dos irmãos. A mãe do Rui
tinha-se suicidado na véspera de embarcar. O Rui
estava no Barreiro. No Minho. No Algarve. As
informações eram tantas e tão contraditórias e eu
tão pequena e incapaz, que nunca encontrei o Rui.
Não esquecerás que o tempo tudo desvanece.
Deixei de procurar o Rui e passaram 36 anos sem
que eu tivesse sabido o que realmente lhe
aconteceu. Decidi, no entanto, que a personagem
principal do romance em que falasse da
descolonização, da ponte aérea, da vinda e dos
retornados, seria um rapaz e chamar-se-ia Rui. Não
por ter dançado os primeiros slows com o Rui, mas
por ter usado muitas vezes o sofrimento do Rui
para aliviar o meu. Era horrível viver sem dinheiro
e sem nada na Metrópole, mas a minha irmã não
tinha morrido, ninguém da minha família tinha
morrido. O sofrimento dos outros alivia o nosso.
Fazemos tudo por comparação. Até sofrer. Bastante
mais tarde, já a meio da escrita do romance,
percebi que a escolha do nome tinha sido acertada