Fluir nº 4 - fevereiro 2020 | Page 13

Lisboa com a minha irmã. Sei agora que o motivo era falta de dinheiro, mas para a criança de onze anos que eu era o motivo não podia ser o dinheiro, os pais tinham de ter sempre dinheiro para o que filhos precisam porque os filhos precisam de pouco, não são como os adultos que precisam de tanta coisa. Até que numa manhã fria de Novembro, sem eu saber como, o meu pai apareceu no adro da Fonte Longa. Tal e qual como eu tantas vezes imaginara. Estava moreno como sempre o conhecera, não era ainda como as caras pálidas da Metrópole, e conduzia o Mazda que ficou estacionado junto à fonte. Não fosse o frio e um pouco de nevoeiro e juraria que o meu pai tinha acabado de chegar do trabalho, em Luanda. Ainda o mesmo corpo. Ainda o mesmo andar para mim. O carro estava amachucado mas era o carro que nos levava a passear à barra do Cuanza e a comer baleizões. O meu pai talvez tivesse os olhos mais baços mas podia ser do nevoeiro. As costas talvez estivessem um pouco curvadas mas podia ser do frio. De resto, era igualzinho ao pai de que me lembrava. Até que me chamou Dulce. Poucas coisas tiveram mais consequências na minha vida do que o simples facto de o meu pai ter-me mudado o nome sem que eu tivesse compreendido porquê. Chamando-me Dulce, em vez de Bebé, eu passei a ser outra e o meu pai passou a ser outro. Porque nada se nomeia ou desnomeia sem consequências, sejam cidades, Lourenço Marques ou Maputo, pontes, Salazar ou 25 de Abril, ou pessoas. Um nome é a primeira coisa que nos dão quando tudo começa e a primeira coisa que nos tiram quando tudo acaba. Um nome, neste caso Bebé, estabelecia uma aliança entre mim e o meu pai, uma aliança entre o que eu era e aquilo que o meu pai queria que eu fosse. Quando mudou o nome por que me chamava, o meu pai deixou de querer que fosse a Bebé a responder-lhe. E eu não sabia quem havia de responder-lhe. Não sabia como responder-lhe. Eu era ainda a Bebé. Não sei se toda a gente consegue identificar o momento exacto em que a infância acaba. Eu consigo. Eu sei que a minha infância acabou naquele momento, no adro da Fonte Longa, quando passei a responder ao meu pai por Dulce. Anos mais tarde, muitos, perguntei ao meu pai a razão de me ter mudado o nome no dia da sua chegada. Disse que não se lembrava de o ter feito, mas acabou por confessar que me tinha visto tão crescida que Bebé já não lhe parecia adequado, sentia-se até ridículo a pronunciá-lo. Pronunciá-lo ali, naquele lugar, naquele tempo. E não havia maneira de voltar ao lugar e ao tempo da Bebé. 13