Lisboa com a minha irmã. Sei agora que o motivo
era falta de dinheiro, mas para a criança de onze
anos que eu era o motivo não podia ser o dinheiro,
os pais tinham de ter sempre dinheiro para o que
filhos precisam porque os filhos precisam de
pouco, não são como os adultos que precisam de
tanta coisa. Até que numa manhã fria de
Novembro, sem eu saber como, o meu pai apareceu
no adro da Fonte Longa. Tal e qual como eu tantas
vezes imaginara. Estava moreno como sempre o
conhecera, não era ainda como as caras pálidas da
Metrópole, e conduzia o Mazda que ficou
estacionado junto à fonte. Não fosse o frio e um
pouco de nevoeiro e juraria que o meu pai tinha
acabado de chegar do trabalho, em Luanda. Ainda o
mesmo corpo. Ainda o mesmo andar para mim. O
carro estava amachucado mas era o carro que nos
levava a passear à barra do Cuanza e a comer
baleizões. O meu pai talvez tivesse os olhos mais
baços mas podia ser do nevoeiro. As costas talvez
estivessem um pouco curvadas mas podia ser do
frio. De resto, era igualzinho ao pai de que me
lembrava.
Até que me chamou Dulce.
Poucas coisas tiveram mais consequências na
minha vida do que o simples facto de o meu pai
ter-me mudado o nome sem que eu tivesse
compreendido porquê. Chamando-me Dulce,
em vez de Bebé, eu passei a ser outra e o meu pai
passou a ser outro. Porque nada se nomeia ou
desnomeia sem consequências, sejam cidades,
Lourenço Marques ou Maputo, pontes, Salazar ou
25 de Abril, ou pessoas. Um nome é a primeira
coisa que nos dão quando tudo começa e a
primeira coisa que nos tiram quando tudo acaba.
Um nome, neste caso Bebé, estabelecia uma
aliança entre mim e o meu pai, uma aliança entre o
que eu era e aquilo que o meu pai queria que eu
fosse. Quando mudou o nome por que me
chamava, o meu pai deixou de querer que fosse a
Bebé a responder-lhe. E eu não sabia quem havia
de responder-lhe. Não sabia como responder-lhe.
Eu era ainda a Bebé.
Não sei se toda a gente consegue identificar o
momento exacto em que a infância acaba. Eu
consigo. Eu sei que a minha infância acabou
naquele momento, no adro da Fonte Longa, quando
passei a responder ao meu pai por Dulce.
Anos mais tarde, muitos, perguntei ao meu pai a
razão de me ter mudado o nome no dia da sua
chegada. Disse que não se lembrava de o ter feito,
mas acabou por confessar que me tinha visto tão
crescida que Bebé já não lhe parecia adequado,
sentia-se até ridículo a pronunciá-lo. Pronunciá-lo
ali, naquele lugar, naquele tempo. E não havia
maneira de voltar ao lugar e ao tempo da Bebé.
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