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O outro que há em ti
Ana Margarida de Carvalho
Deixa, senhor,que se criem teias
nos meus olhos.
E se desfaçam líquidas minhas dores.
Se joguem as areias nos cabelos
estéreis.
E se tornem pedras feridas os ossos.
Se abram as veias
como as janelas da casa,
num dia de cigarras estridulantes.
Deixa, senhor, ser a negação de todas as tuas desobediências,
estorvo de todas as tuas impaciências.
E quando,
(só mesmo quando)
aquela lagartixa sem cauda,
(só mesmo aquela)
ausente do seu membro autotómico,
que ficou no caminho, em espasmos reflexos,
ante os seus predadores perplexos,
quando ela vier,
embaciar o seu ventre exausto,
nos meus escombros, raros interstícios,
aí sim,
serei digna de ti.