Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 6

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O outro que há em ti

Ana Margarida de Carvalho

Deixa, senhor,que se criem teias

nos meus olhos.

E se desfaçam líquidas minhas dores.

Se joguem as areias nos cabelos

estéreis.

E se tornem pedras feridas os ossos.

Se abram as veias

como as janelas da casa,

num dia de cigarras estridulantes.

Deixa, senhor, ser a negação de todas as tuas desobediências,

estorvo de todas as tuas impaciências.

E quando,

(só mesmo quando)

aquela lagartixa sem cauda,

(só mesmo aquela)

ausente do seu membro autotómico,

que ficou no caminho, em espasmos reflexos,

ante os seus predadores perplexos,

quando ela vier,

embaciar o seu ventre exausto,

nos meus escombros, raros interstícios,

aí sim,

serei digna de ti.