Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 40

Primeiro a infância, as memórias vagas, curtas, desbotadas, quase fotografias.

As tardes de sol e poeira.

Os joelhos rasgados.

A t-shirt sempre com manchas de fruta.

Um ralhete da mãe.

Manchas de amora, tão difíceis de tirar, tão más como as de vinho, tão más como as de vinho, repetia, não fosse a vizinha, apesar de não ser surda, um ouvido com precisão de balança de ourives, capaz de atravessar paredes e portas, não querer perceber ou desentender quando bisbilhotasse.

Uma bicicleta, como um cavalo, um dragão, um avião, um barco, um foguetão, um submarino.

Um submarino como?

Quando chove também anda debaixo de água.

Depois a adolescência.

A febre do primeiro amor.

Laura, loira de olhos verdes, para mais um ano mais velha.

O primeiro beijo uma conquista, como se, por São Jorge, a conquistar Lisboa aos Mouros!

Os beijos que se seguiram, tardes inteiras feitas de beijos, o tempo feito de bocas.

Bocas ampulhetas dos segundos, dos minutos, das horas dos meus dias.

Bocas espoletas que faziam explodir granadas à flor da minha pele.

A fome de beijos.

A fome de beijos.

A fome de fome dos fins de tarde.

Era capaz de comer meia dúzia, seis pães!, com manteiga, de uma enfiada, depois, mal tocava no jantar, pelo que mais uma vez era obrigado a ouvir as palavras da minha mãe cheias de siso, as mesmas que já me ouvi repetir literalmente às minhas filhas.

Depois da bicicleta, uma vespa, a minha sorte em ter uma motoreta, a importância do usufruto e posse de um objecto de desejo alheio.

Importância nenhuma, porém enquanto não percebemos isso, os objectos são detentores de uma importância que os transcende.

Assim, derivado de um objecto com duas rodas e motor, eu objecto de admiração e inveja enquanto estacionava em frente ao portão da escola, eu a arrumar devagar o capacete, eu em câmara lenta a passar a mão pelo cabelo, a imaginar-me um dos duros, um James Dean, um Steve McQueen, um Newman, um Brando. Um BOND! Até ouvia a musiquinha quando atravessava o portão, isso e os suspiros das Bond Girls.

Depois a faculdade, queria seguir Teatro, fui para Direito.

Que do teatro ninguém se sustenta neste país, que eu não estou disposto a pagar cursos a malandros. Que se alguma vez lhe faltou alguma coisa? Não, pois não? E isso porquê? Porque eu escolhi uma profissão séria.

A primeira discussão.

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O mundo a encolher

Raquel Serejo Martins