Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 37

37

A todo o momento Mafalda podia tê-lo morto e não o fez. A Companhia Sol-Plus abandonou-o, mas não esta tonta cadela, incapaz de imaginar o conceito de traição.

Sonda de recolha em vector de contacto. Gancho detectado. Informa-o o processador do escafandro. Intercepção dentro de cinco minutos e a contar. Top.

Lá ao longe, onde antes havia pixéis a barrar a vista da Floresta, há formas a correr através da erva, na sua direcção. Formas esguias, sinuosas, rasteiras, mortais. Caída a Barreira, é a vez dos Lobos avançarem. Tomé aperta o canhão contra o peito, verifica a amplitude da carga, descobre que esta está ao máximo, e que pode enfim disparar. Primeiro sobre a sua menina dilecta e depois sobre os Lobos. Mas não pode, não pode, não pode.

Voltar a conviver com humanos indiferentes depois de cinco anos de solidão? Ser reintegrado noutra Quinta, noutro planeta hostil, noutro horror? Para quê? Já chega, por favor, basta quanto basta.

Baixinho, ordena que o escafandro se separe do balão. Numa só palavra, cancela a recolha. O escafandro protesta, insiste, pede nova confirmação, Tomé recusa-se a voltar atrás, e por fim o escafandro desliga-se do fio, do mundo, da civilização humana. A vida é sua, caro utente!

Em seguida ajoelha-se, abraça Mafalda, coça-lhe as orelhas com a mão blindada, e sussurra-lhe numa

— Gosto muito de ti, Tomé. Sabes que eu nunca te faria mal, não sabes?

Tomé estremece. Chantagem afectiva da parte de um canídeo? E porque não? Não foi assim que esta espécie sempre se comportou com os respectivos donos? Os dedos fixam-se no gatilho digito-eléctrico do canhão de partículas. Vamos lá a acabar com isto, pensa. Não posso abandoná-la aqui. Chegou o momento de dizer adeus. E rápido, sem que ela dê por nada.

— Tomé, eu sei que vais partir e que te vais embora sem mim. — murmura a cadela com a pata direita a arranhar as fibras do escafandro. — Julgas que eu sou parva? Que ias ficar tu a fazer num mundo que já não é o teu? Para alguma coisa serve a amplificação de Grau 5. Deixei de ser necessária aos interesse da Companhia. Tara perdida, correcto? Vai, vai, que eu não levo a mal. Mas fica sabendo que Eles, os Lobos, conversaram comigo ainda esta manhã. Com tanta confusão, nunca me deste oportunidade de te explicar o que eles me ofereceram.

— Os Lobos falaram contigo? Como assim?

— Não consigo explicar, mas falaram mesmo. Pediram-me que te degolasse. Pediram-me para deixar a Quinta intacta e a carne acessível. Em troca...

Tomé estremece num arrepio terrível.