Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 34

claro, mas principalmente letais para qualquer outra espécie exótica que lhes queira fincar o dente. Eis a Política da terra queimada em todo o seu esplendor. Nada vai restar aqui capaz de dar proveito aos Lobos ou ao Enxame.

Entretanto, lá em cima, o falso sol do meio da tarde tornou-se quase invisível, pois já não há energia que o sustente. Nestas duas horas foi mirrando, mirrando, até quase não se ver. O azul brilhante do céu, vagamente nublado com tímidos cúmulos brancos, foi ao poucos sendo substituído por uma cor crepuscular vagamente purpurina. Finalmente, pela primeira vez nestes cinco anos de exílio, Tomé pode ver a estrela Tau-Ceti a espreitar junto ao horizonte numa ascensão contraria o falso Sol. O céu está repleto de traços fulgurantes de luz.

Mafalda levanta o focinho e fixa os olhos em pontos luminosos que mal pode ver.

— Tomé, Tomé... aquilo são estrelas?

Tomé suspira, coça-lhe as orelhas e responde baixinho: — Não, minha linda. Estás a ver os traços das tochas de hidrogénio das naves humanas em fuga. Não tarda que todos os Orbitais estejam desertos.

— Os humanos fogem? Os humanos recuam? Os humanos não são valentes? Têm medo dos Lobos? Como é possível?

— Os humanos têm medo dos Zorgrup e da

combate sem piedade contra pinças presas e garras.

E enquanto pensa isto, os carneiros avançam, numa fila irregular, controlada pelos latidos da Mafalda, rumo ao portal que os levará aos Céus.

E, horror, avançam a cantar, sim, caminham numa ignorância pateta, lado a lado, a balir doces melodias.

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Duas horas depois, com o mundo em volta a arrefecer numa agonia inexorável, as luzes de aviso do matadouro começam a faiscar, azul-verde, azul-verde, sinal que o processamento e armazenagem das peças de carne recolhidas está próximo do fim. Para quem queira acreditar nestas coisas, neste preciso instante, todas as almas dos ovídeos partiram já na direcção de um Céu feito de infinitas pastagens, e deles só resta a vil carne liofilizada. Sentado na única cadeira de palha do alpendre, com uma Mafalda inquieta estendida aos pés, Tomé murmura, o que tem de ser tem muita força, e envia à unidade gnóstica das Portas do Céu uma pequena mensagem. É um código que nunca pensou utilizar antes, algo que a Companhia Sol-Plus lhe disse para activar apenas em casos de hostile Take-Over. E as ordens são estas: Todas, mas todas as peças de carne deverão ser contaminadas com toxinas de espectro múltiplo. Toxinas hostis aos humanos,

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