Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 32

consoante as necessidades, foi obrigado, com a ajuda da Mafalda, a encaminhar a carne para o matadouro, aquela barracão lá ao fundo, a quinhentos metros desta moradia, um barracão dotado de uma única via de acesso e sem nenhuma saída possível. Um matadouro. A porta directa para o alegado Céu. Quem lá entrar nunca mais regressa. E estes tristes, porque lhes foi dada a consciência, julgam que vão passar de uma monótona existência feita de pastagem sexo e defecação, a uma eternidade de êxtase sublime. Desgraçados! Um espigão eléctrico na base do crânio, isso sim, um grampo a pendurá-los pelas patas traseiras e um corredor cheio do brilho dos lasers e fedor a fezes, urina e carne queimada. E agora, mesmo essa ilusão de eternidade, vai ter um fim, pois vão ser evacuadas todas as Quintas na superfície do planeta. Ovinos, caprinos, suínos, espécies de aquacultura, tudo isto será, dentro de algumas horas, tara perdida.

— Pois claro que vocês têm direitos, — responde Tomé, erguendo-se com dificuldade da cadeira de palha. Está em vias de sofrer um ataque de pânico mas, caso isso aconteça, as hormonas do medo e do terror seriam imediatamente detectadas pela Comissão Sindical. Pior do que tudo seria ver estes tristes a correr pelo prado fora até irem esborrachar-se contra a Barreira. — Mr Dark, estive a pensar seriamente neste assunto e concluo que a Providência dos Céus a todos chega. A todos, Mr. Dark. Até a si e aos seus amigos... pois fique sabendo que soou a hora. A partir deste instante será vossa, a Eterna Felicidade...

a pensar seriamente neste assunto e concluo que a Providência dos Céus a todos chega. A todos, Mr. Dark. Até a si e aos seus amigos... pois fique sabendo que soou a hora. A partir deste instante será vossa, a Eterna Felicidade...

Mr. Dark dá um saltinho entusiástico, esbarra com uma das fêmeas da Comitiva, volta atrás, quase poisa a pata no primeiro degrau do alpendre, olha Tomé nos olhos, e bale em alto e bom som: — Vamos ser escolhidos? Vamos ser escolhidos? Vamos ser escolhidos?

Tomé acena que sim mas, perante a incompreensão da Comitiva, verbaliza a resposta: — Correcto e afirmativo. Todos vós. Todos vós.

E enquanto diz isto, subvocaliza uma série de códigos de acesso, rápido, enquanto a Quinta ainda tem rede e energia. Lá ao fundo, o matadouro a quem os ovinos chamam As Portas do Céu acende-se em radiosa glória. Estrias luminosas percorrem as paredes laterais, a comporta frontal de acesso abre-se numa rampa feita de doçura, a emitir moléculas perfumadas de sexo e outros deleites.

— As Portas do Céu estão abertas a todos os Puros. — sorri Tomé na direcção de Mr. Dark, com um dedo a apontar na direcção do barracão — A todos vós, meus queridos. Ao rebanho inteiro. Junta-te aos teus companheiros.

Nesse preciso instante Mafalda, até ali ausente,

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