Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 31

Debaixo de um céu azul, protegidas pelo Domo, cantam cigarras entusiásticas. Estridulam como se o Universo inteiro não estivesse a poucas horas do fim. E Tomé estremece, porque faz frio. De ontem para hoje a temperatura ambiente baixou vários graus. A erva junto aos degraus da moradia está coberta de gotinhas de geada.

— Meeeeeestre! — insiste Mr. Dark.

— Bááá... — resmunga a frente Sindical.

Tomé sacode a cabeça, puxa a cadeira de palha para junto do primeiro degrau do alpendre, senta-se, vira os olhos na direcção de Mr. Dark e inicia o contacto, mesmo sabendo que este não vai levar a lado algum.

— Sim? Quem mais querem vocês?

Mr. Dark aproxima-se um pouco mais, receoso, não vá a Mafalda aparecer de repente e ferrar-lhe os dentes como paga de tanta ousadia. Abre a boca, mas o som vem de facto a partir do fonador implantado no pescoço.

— Temos sérias dúvidas acerca da natureza do Céu. E dos escolhidos...

— Dúvidas? — pergunta Tomé, resignado. — Como assim?

— Bom, — diz Mr. Dark deixando cair umas quantas bolotas de fezes pelos quadris traseiros. — a verdade é que nestes últimos meses, foram chamadas ao Azul Cintilante vinte crias

recém-nascidas, dez jovens imaturos, duas fêmeas prenhas, sem que, pelo menos para mim, consiga perceber a natureza de tão grata recompensa. Gostaria de ser informado do porquê destas escolhas. Que fizeram eles, os Eleitos, que eu não tenha já feito? Mestre, eles foram recompensados com a Ascensão e entretanto ninguém escolheu qualquer um de nós, a comitiva de Contacto, principalmente eu, que sempre vos tenho servido.

— Bááá... — concordam os sindicalizados. — Também nós temos direitos...

Tomé engole em seco, exasperado, quase ao ponto de começar a corrê-los a todos aos pontapés. O tempo faz-se escasso e aqui está ele a debitar vacuidades. Estúpida carneirada que nunca entendeu que Ascender é morrer. E que a morte, a morte da consciência, cabe a todos os seres vivos, mais tarde ou mais cedo. Tudo depende das ordens vindas lá do Alto. Por isso, é-lhe indiferente a noção de injustiça que começou aos poucos a nascer entre os ovinos. Dar-lhes consciência foi um erro de casting, sem sombras de dúvida. Porque a consciência por muito ténue que seja, só provoca angústias metafísicas. E para reparar o mal, uma dose significante de mentiras piedosas, claro. Nestes últimos cinco anos Tomé foi responsável pela produção de lã, queijo e proteína destinada aos Orbitais. Durante cinco anos, consoante as

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