Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 30

Não apreciam mesmo nada a presença de espécies invasivas como nós, ou melhor, como vocês, os humanos. Os Lobos, segundo fui informado, pactuaram com o Enxame. Converteram-se ao Absoluto. Optaram pela Singularidade. E portanto aceitaram o nosso extermínio sem apelo e sem agravo. Mesmo a propósito, será que ainda tem por aí guardada um canhão de partículas? Vá buscá-lo, porque entre a extracção e a Queda do Domo ainda vão decorrer umas quantas horas... Pronto. Estou neste momento a enviar-lhe os dados topológicos do ponto de Recolha.

— Merda, merda, merda... — geme Tomé a escorregar pela parede abaixo. — E a Mafalda? Que vai ser dela?

O Administrador encolhe os ombros, abre os braços, mostra as mãos nuas: — Está a falar do seu cão pastor? E eu com isso? Ora aqui estamos nós, mais que ralados, a tentar salvar a espécie humana. E quase nos faltam os recursos para cumprir todos os protocolos contratuais... Quero lá saber dos estados de alma de uma subespécie... Acha que temos recursos disponíveis para a extracção de um animal? Seja humano, assuma a perda, dê-lhe um tiro na cabeça e acabe com o sofrimento da criatura. Prazer em ouvi-lo, conversa terminada, vamos a despachar...

O holograma do Administrador esvai-se tal como

surgiu. Laura, a mulher, desintegra-se em milhares de pontinhos prateados. Números em contagem decrescente piscam na consola. O tempo e as marés não esperam por ninguém.

Sentado no chão, Tomé soluça baixinho.

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Lá fora, mesmo junto ao alpendre da moradia, mas sem nunca tocar com as patas no primeiro degrau de madeira, respeitador da Lei, Mr. Dark espera por ele, rodeado por cinco membros da comitiva sindical, duas ovelhas e mais três outros machos. São todos carneiros adultos, de várias raças, dotados de amplificação cognitiva e um microfonador junto à zona da garganta. Devem estar ali desde a madrugada, a balir baixinho, numa complacência irritante. Lá no alto o sol em ascensão cintila, tremelica, prestes a apagar-se. Será esta a derradeira manhã da Quinta antes do colapso final. Mr. Dark e os seus companheiros não se dão conta de nada, pois há outras coisas que os preocupam. Coisas da vida que nunca lhes foram claramente explicadas.

Tomé suspira, olha em volta, contempla o prado que se estende numa paz arcadiana até perder de vista, e depois fixa-os nas manchas fugidias dos passarinhos que esvoaçam por todo o lado numa busca furiosa pela primeira lagarta do dia.

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