Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 28

de panquecas numa das mãos. O solidograma do filho desapareceu dos bancos de memória da residência, dos circuitos gnósticos de Laura, o quarto onde ainda há pouco o miúdo habitava encontra-se agora vazio, sem cama, sem cómoda, sem secretária sem tapetes, sem coisa nenhuma que o identifique, Tomé estremece, morde os lábios, aos pouco percebe ( ou volta a lembrar-se) que o filho não passa de uma simples ilusão terapêutica, para o entreter nestes anos de solidão, nada mais do que isso, que nunca teve filho algum a não ser na cláusula do contracto desta quinta de produção proteica destinada às Colónias Orbitais.

Encostado à parede do quarto vazio, tão vazio quanto o estômago já saturado de carne de borrego, Tomé apercebe-se que a luz na consola principal está a piscar, blip, blip, num pedido urgente de comunicação, e que deve estar já assim desde ontem, ou então há já vários dias, vá-se lá saber. Viver exclusivamente entre animais falantes destinados ao abate não faz bem às consciências. A realidade torna-se frágil e quebradiça a quem não se dá conta dela.

— Ligar, ¬ — pede em voz alta.

O holograma do Administrador Chavez materializa-se a meio da sala de estar. É uma IA simplista, vagamente anafada para dar uma ilusão de conforto, careca e de crânio luzente, trajada com o

uniforme púrpura da Companhia Proteica Sol-Plus. Carrega ao peito um desenho circular de um carneirinho rodeado por um halo de luz. Ao ver o estado de desleixo em que se encontra Tomé, o Administrador abana a cabeça, contristado, soergue uma das mãos sapudas e abana o indicador à guisa de repreensão.

— Logo vi. Deixamos a água correr e depois ignoram-se as consequências. Caro Tomé Esteves, andamos há uma semana a tentar comunicar consigo e o meu amigo a fazer-se de surdo. Não viu os sinais? Olhe que a privacidade tem os seus limites.

Tomé quer investir, segurar o Administrador pela garganta e apertar-lhe os gasganetes, insultá-lo como se não houvesse amanhã, mas tudo isto são acções inúteis contra um holograma que nem sequer solidez possui. Um holograma que insiste no ralho.

— O meu amigo tem seguido as notícias na Inforede? Estou a ver que não. Pois bem, a verdade é que elas são um bocadinho desagradáveis para quem tenha uma alma sensível. Está preparado? Quer sentar-se?

— Não quero sentar-me coisa nenhuma! — berra Tomé, exasperado. — Onde é que está o meu filho? Porquê um holograma em vez de um solidograma? Porque é que a Laura está ali, sem reagir? O que foi

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