Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 27

sintético, mas a verdade é que há ali qualquer coisa que não joga bem, um pequeno erro no programa em vias de se transformar num erro maior, uma ausência inexplicável, um lugar à mesa que está vazio. Tomé franze o sobrolho, coça a cabeça, até que finalmente percebe que o filho, o Luizinho, já não se encontra entre eles. Daí o silêncio, a ausência de birras e protestos, o permanente palrar de uma criatura aliás muito pouco cordata.

— Onde é que está o Luís? — pergunta a Laura.

— Qual Luís? — responde a mulher, que acabou de poisar o bule em cima da mesa, com toda a calma, como se o desaparecimento do filho não fosse nada com ela. — de uma vez por todas fala claro a ver se alguém te entende... Não há aqui nenhum Luís. Tomaste as pastilhas? Temos mais uma crise psicótica?

Merda, murmura Tomé sem querer mais saber do pequeno-almoço. Num gesto brusco, afasta a cadeira para o lado. Levanta-se. Olha em volta. Em lado algum descobre os micro robôs que o Luizinho tanto gosta de estraçalhar, os livros de estudo, as pistolas e desintegradores para as guerras simuladas. Não acredito nesta porra. Que raio anda a fazer a Sol-Plus?

— Luís, ó Luís, onde te meteste, desgraçado?

Mas não há resposta, claro. Apenas o silêncio e a indiferença da mulher, que continua hirta junto à mesa do pequeno almoço, desta vez com um prato de panquecas numa das mãos.

As tuas unhas podem carregar em botões, caso não esteja presente o controlador mestre. Com o teu dono morto, os protocolos de acesso passam directamente para ti. Pffft... Adeus falso Sol, adeus Barreira, miam, miam proteína a jeito, a minha Alcateia vai deleitar-se com o sabor de uma carne estranha, os Zorgrup vão agradecer-nos por sermos tão expeditos, e tu, pequenota, à guisa de recompensa por esta pequena traição, ou nem mesmo isso, porque o teu dono não pertence à mesma espécie do que tu, pois não? Mata-o, mata-o, mata-o já hoje...

Há limites para tudo. Mafalda não consegue aguentar mais. A visão do Lobo do outro lado da Barreira, sentado a coçar as escamas do ventre com uma das garras curvas, ultrapassa os limites do tolerável. O coolie vira-lhe as costas e desata a correr rumo à moradia onde Tomé decerto espera por ela preparado para mais um dia de monótonos trabalhos. Matar o dono, oferecer-se ao inimigo? Como assim? Tomé é o macho Alfa. Aquele a quem Mafalda deve subserviência.

2

Tomé está sentado à mesa do pequeno-almoço, já vestido e preparado para a labuta diária junto ao redil, a ouvir rádio que a Estação Orbital achou por bem difundir, Laura está nesse preciso momento a servir-lhe o café matinal, um café que sabe a sintético, mas a verdade é que há ali qualquer coisa que não joga bem, um pequeno erro no programa em vias de

27