Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 24

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Mafalda, um border coolie de upgrade 5, está a cheirar a erva, a poucos metros do Limite da Barreira, a suster a urina caso seja necessário marcar novo território, com a cauda meio recolhida, olhos fixos na rede de pixéis que se ergue mesmo ao lado, uma parede translúcida que sobe e sobe na vertical até dobrar-se lá no alto, muito para lá dos limites de visibilidade de um simples canídeo. Lá em cima, mesmo sobre o ápex do Domo, brilha o falso sol a anunciar mais uma manhã de viçosas alegrias. À volta das florinhas silvestres dispersas pela campina, esvoaçam besouros em doces zunidos. Nas poucas e raquíticas árvores que quase nenhuma sombra oferecem, trinam estúpidos pássaros a trautear canções que dizem estar na moda noutras zonas do Império. Mafalda nunca entendeu qual o verdadeiro sentido das melodias. Por muito que se esforce, por muito que tente aceder à Infopédia, as palavras parecem não ter sentido algum. São decerto manias de dono, não de um coolie que nada entende das fixações estéticas dos humanos. Mafalda devia estar feliz por estes curtos momentos de irresponsabilidade antes da monotonia dos labores diários, mas a verdade é que qualquer coisa está mal, existe um odor a azedo a contaminar os talos amarelecidos mais próximos da

Zona Limite, como se esta estivesse a retrair-se, tal como uma coleira que aos poucos se aperta, numa contracção inexorável, a matar a erva, a contaminar o solo, a destruir todas as bactérias e vermes que facilitam a oxigenação dos solos. Mafalda cheira e não gosta. Mafalda espirra para se desfazer do incómodo fedor. Late baixinho porque não quer incomodar ninguém, é um cão cordato fiel e obediente, daqueles que só chateia o dono quando o assunto é demasiado grave. Mas em cada dia que passa, as coisas pioram, o universo degrada-se, e Tomé anda tão preocupado com outras coisas que parece não querer saber disto para nada.

Mafalda tem medo do que consegue vislumbrar do outro lado, ou seja, a verdadeira floresta que cobre este planeta de uma ponta à outra. Tem medo, mas a atracção pelo abismo parece fazer parte do genoma dos cães e gatos. Tomé sempre lhe disse que o que havia do outro lado, era mau, mau a valer, de uma agressividade terminal, e que a Mafalda, se fosse uma boa menina, devia manter-se à distância dos limites instáveis do Domo, mas ela não consegue conter-se, porque o lugar onde vive não passa de um cercado com cinco quilómetros de diâmetro, enquanto lá fora, no mundo verdadeiro, as coisas prolongam-se num nunca mais acabar de mistérios, relentos e ameaças. A floresta, meio desfocada pelos pixéis que constituem a Barreira,

LOBOS À PORTA

João Barreiros