Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 22

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como se a indiferença dos outros países aos apelos lancinantes dos judeus não os tenha tornado cúmplices na dimensão que a catástrofe tomou.

Em particular nós, os portugueses, temos sido exímios a escapar às contas da História. Aos costumes - o esclavagismo, as atrocidades coloniais e o racismo - dizemos nada.

A categoria outro é um sedutor truque de ilusionismo, mas não nos salva do risco e da exigência do nosso próprio fado. No fim, seremos julgados como todos os outros, e pelos mesmos critérios.

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Arrumar nos outrosoutros povos, outros tempos - o pior que pode haver em cada ser humano e em cada sociedade é tão confortável quanto perigoso. Que optimismo nos leva a acreditar que somos diferentes? Que candura nos faz pensar que os tempos de antanho nada têm a ver connosco?

E o que é isso: outros tempos? Quando é que ficam realmente para trás, como podemos ter a certeza de que passaram à História?

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O olhar sério do meu alemãozinho de cinco anos em frente a Buchenwald, quando perguntou: “que terias feito se vivesses nesse tempo?” Pensei na sua

interpelação recentemente, quando em conversa com um norte-americano reparei que ele usava black como sinónimo de delinquente.

“Que farias tu se visses essas coisas a acontecer?”

À porta de Buchenwald, respondi ao meu filho que não sabia, porque temia que os nazis me tirassem os filhos para os reeducar, caso eu assumisse uma posição de confronto. No Natal passado, em casa de amigos, não fiz nada. Porque era Natal, e eram amigos, e não queria criar mau ambiente.

Tenho-me em boa conta, mas nem preciso de um regime totalitário que me sirva de desculpa para ficar em silêncio quando sou testemunha de alguma iniquidade. Não sou melhor que esses que quero crer absolutamente outros, os que tiveram o azar de viver na Alemanha na primeira metade do século passado e não souberam como impedir atrocidades.

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Nós versus outros é uma simplificação grosseira. Raspando a casca fina do verniz cultural, temos tanto de igual quanto de único e diverso.

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- O senhor sabe o nome dos habitantes desta terra?

- Sei, sim senhor.

- E pode dizer-nos?