Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 19

E quando se regressa a si já não se é a mesma pessoa. O Richard Holmes, biógrafo e professor, vê na biografia uma disciplina humanista: pode ensinar-nos como compreender melhor as pessoas. E portanto, através dos outros, a nós próprios.

Que referências e influências indicaria como as que a marcaram na «arte de bem biografar»? Que estrangeiros, que nacionais? Há uma tradição interessante da biografia em português?

Estrangeiros, sem qualquer dúvida, sobretudo ingleses e americanos. E são tantos!

Aprendi também muito na tese de doutoramento sobre os biógrafos de Camilo, que é o nosso escritor mais biografado. Aprende-se muito com os erros, os alheios e os próprios. Pelo que disse atrás, e quanto à tradição portuguesa: está a formar-se.

A ficção é uma tentação, não é? Ela está lá, sim, na relação que se estabelece com o biografado — porque estão duas subjectividades em jogo. Está-se num trapézio, num arame muito esticado a entrever um abismo lá em baixo: de um lado os factos, do outro, a ficção e a auto-projecção.

Ao escrever a biografia do Ar.Co, demorei semanas a aceitar que teria de entrar na ficção para fazer passar a personalidade e a vida quotidiana do Ar.Co. Foi uma solução heterodoxa e experimental — tal como a escola que biografava. Mas respeitei os factos. Há muitas maneiras diferentes de misturar factos e ficção.

Como se forma (ou não tem de se formar) uma identificação entre si e o seu biografado? Acontece compreender-se melhor a si própria na compreensão da pessoa sobre que escreve, ou ela permanecerá sempre um «objecto», um «outro», até certo ponto?

Permanece sempre outro, o que não só acho inevitável como desejável. Uma das seduções da biografia é justamente essa, sair de si e tentar entrar no mundo de outro que não é inventado, como no romance, mas é alguém que existiu. Portanto a entrega tem de ser total. É um alívio de si e uma evasão, este vai-vem entre eu e o outro.

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