Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 17

esporádico.

Uma vez escrevi: “O meu interesse pelo género ‘biografia’ resulta talvez de uma espécie de reacção a uma proibição de olhar para dentro da vida dos escritores que estudava na Universidade.” Era o estruturalismo: o autor tinha morrido, nada mais havia senão o texto, que não podia ter rosto. Lembro-me de então me intrigar muito o Céline, escritor genial, colaboracionista nazi e médico de pobres num bairro fabril. E outros, cujas biografias procurava nas bibliotecas de Coimbra. Mas havia poucas.

Muitos anos e vários artigos, recensões, críticas e ensaios mais tarde, quando escrevi a biografia do Alexandre O’Neill [Alexandre O’Neill. Uma Biografia Literária, Dom Quixote, 2007], apaixonei-me pelo género biográfico. Li muitas biografias, logo a seguir teoria sobre biografia e achei que era isto mesmo que eu queria fazer. Quando me perguntam sobre este meu interesse, uso sempre o verbo apaixonar porque foi isso mesmo que me aconteceu e não há outra palavra. De resto, acho que para uma pessoa se meter numa empresa destas, a de mergulhar na vida de outrem durante anos, é preciso um estado de paixão, misturado com obsessão — o que era perfeito para mim. É muito complicado desenterrar um morto, não pode ser feito com leveza. Trata-se de uma pessoa que viveu realmente.

Esta descoberta tornada paixão tinha um óbice: é que não existiam biógrafos em Portugal. Era ocupação que não existia. Não permitia o meu sustento — sendo que escrever uma biografia pode demorar anos. Pior: não havia ninguém com quem falar sobre o assunto. Esperei muito tempo até poder conversar com alguém que também escrevesse biografia. Enquanto escrevi a do O’Neill, claro que falei com pessoas que escreviam, mas não biografia especificamente. Por isso estou muito contente que comece a haver uma cena em Portugal. Há uma série de biografias em produção e começo agora a escrever e a conversar com as pessoas que estão a fazer o mesmo que eu. Outra coisa excelente é ter começado a dar aulas de Escrita de Biografia que, além do mais, me ajudam muito a reflectir sobre o que vou fazendo.

Em «Como a Sombra que Passa», Antonio Muñoz Molina regista a biografia dos dias que o assassino de Luther King, na sua fuga, passou em Lisboa, e dos dias, anos volvidos, em que o próprio Molina visitou a mesma cidade. São histórias paralelas, de pessoas diferentes, em tempos diferentes: o único ponto comum entre ambas as biografias é a cidade de Lisboa. Alguma vez uma certa cidade poderia ser o ponto de partida para a Maria Antónia escrever uma «autobiografia com cidade ao fundo» e,

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