Fluir nº 2 - fevereiro 2019 | Page 14

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Os mesmos que, muitos setembros depois, uma outra que também fui voltou a calçar, empurrando os pés contra as paredes do molde, forçando-se em passos doridos pela alcatifa do quarto, insistindo em ser aquela que posava feliz. Mas o tempo já tinha feito o seu trabalho.

Continuo a escavar, mesmo quando só vejo raízes e pedras.

Procuro datar, estabelecer uma cronologia. Sou cuidadosa com as coisas que encontro no interior terroso do corpo. Sei que a mudança de meio as pode danificar para sempre. Numa das camadas, descubro a casa com nome de porto de mar, erguida em frente ao pinhal, descubro os poemas manuscritos nas paredes, o espelho oval com a cercadura de folhas metálicas e, nele, tantas outras que fui. Elas habitam o meu corpo, mas seguem livres na cabeça dos que as conheceram. Uma tem sempre dez anos e nada mil metros por treino; outra, mais velha, fez-se muito calada e deita-se sempre tarde. Somos muitas, de vários tamanhos, encaixadas como bonecas russas. O rosto repetindo-se transformado. Sulcado por rios e águas da chuva; ou ateado pelo Sol, como daquela vez em que, aos dezasseis anos, essa que via no espelho vestiu a camisola vermelha e, plena de juventude, perdeu todos os autocarros.

Trago pás e outras ferramentas para escavar. Coloco estacas verticais sobre o corpo que é o meu, defino o lugar do furo, e começo.

Quantas versões de mim em ocupações mais antigas do tempo?

Escavo. Faço um buraco no peito. Dali, espreito o fundo, o poço com a noite e as estrelas, e vou avançando. Corro o risco de não voltar, porque há caminhos que são só de ida. O vento trouxe poeiras e depositou-as sobre as coisas, cobriu as páginas dos livros, o pendente de vidro transparente, a praia de ondas bravas, o vinil que tocou um ano inteiro. Registo tudo no diário de escavação: pequenas observações, objectos intactos, fragmentos vários. Desenho as papoilas na inclinação do monte, a lareira acesa no Inverno da casa,

a curva do ventre sublinhando cada gravidez.

Demoro-me numa fotografia anterior a esses dias, subitamente ali, misturada com as loiças e os vasos das violetas. Reconheço-me nos olhos daquela rapariga de vinte anos, que sorri sentada num muro baixo, com os sapatos amarelos suspensos no ar.

Sandra Catarino

Arqueologia