Entrecontos Agosto/18 - Número 001 entrecontos agosto 2018 numero 1 | Page 21
após o outro. Acho que é por isso que ainda estou vivo tempos, devido aos rombos nos cofres do governo que não
nesse mar de loucura. repassavam o dinheiro para melhoria dos muitos hospitais
A força daqueles seguranças brutamontes e UPAs de cada cidade do Rio de Janeiro. Não é hora pra
dispostos a cumprirem suas funções ainda não era párea tapar o sol com a peneira. A população já morria nos
para a minha determinação. Eu me deba a enquanto eles corredores sobre às macas aguardando atendimento muito
me arrastavam para fora, aos empurrões. Por fim, só me antes disso tudo acontecer. Aliás, posso dizer que isso só
restava gritar: facilitou as coisas. Quando eles chegaram, o cenário já
– O senhor está cometendo um erro, precisa me estava pronto, bastou somente apertar o botão de fim do
ouvir! Carros de fumaça não serão suficientes, precisa mundo e iniciar o rodar das engrenagens da máquina
melhorar os hospitais, precisa das vacinas antes que seja apocalíp ca, que consumiu e aterrorizou o país em tão
tarde demais, me escute, me escuteeeeeeeeee! pouco tempo...
Foi a par r daí que as portas literalmente se
fecharam para mim...
... desgraçados... se
vessem me ouvido. Se
vessem dado atenção as minhas palavras, talvez isso tudo
não vesse acontecido, talvez ela ainda es vesse viva. Meu
***
Rio de Janeiro. Galpão do Material de Construções
M&M. Dias atuais.
Iniciando a gravação...
– Tá funcionando? Essa coisa tá funcionando? Tá
gravando? – Um, dois, trêstapas na câmera. – Acendeu. A
luz vermelha acendeu, tá piscando. Deve tá gravando.
Agora é só ajustar o foco e...
amor, meu grande amor. Ví ma da negligência dos
corruptos do alto escalão. Talvez se vessem me escutado,
ao menos teriam se preparado como eu me preparei:
estoque de man mentos, vacinas, remédios, telas de
proteção e muitos vidros de repelente. Pena que nada disso
foi suficiente. Só retardou o inevitável. Ela se foi, morreu em
meus braços e agora... agora é meu menino que está quase
indo. E eu, impotente, estou preso nessa droga de galpão
– Meu nome é Carlos Moraes de Andrade. Casado, que projetei crendo que traria segurança para minha
melhor, eu era casado. Agora sou viúvo. Ah, droga! Falar família. Eu sabia, sabia que esse caos chegaria logo. Me
disso é tão di cil! Melhor começar de novo. Eu sou o Doutor preparei para ele, mas não foi suficiente. Eu falhei!...
Carlos Moraes Andrade e quero deixar registrado aqui
minha história. Eu não tenho muito tempo. Logo aquelas
coisas lá fora encontrarão um meio de invadir meu refúgio.
Quem sou eu? ... Eu sou o cara que previu toda esta merda!
... como eu sabia? Fala sério onde você esteve
durante todos esses anos? Será que só eu me dei conta? ...
Confere aí: peste negra, 50 milhões de mortos de 1333 a
1351; tuberculose,1 bilhão de mortos entre 1850 a 1950;
... primeiro gostaria de dizer que me chamaram de muitas malária, 3 milhões de mortos por ano desde 1980; e eu só
coisas. Me ridicularizaram perante a sociedade, perante listei algumas, muito mais doenças diferentes arrasaram
meus colegas de trabalho, perante minha família. Meus com a humanidade ao longos dos anos, desde a Varíola até
vizinhos me olhavam com indiferença, imaginando que eu as recentes gripe suína, aviária, dengue, chicungunha e zika
era algum cien sta maluco, já as crianças da vizinhança, vírus, que marcaram a úl ma década.
sempre caçoavam de mim. Mas, mas mesmo assim, eu
tentei, tentei alertá-los. Se ao menos aquele desgraçado
vesse me ouvido...
... eu sempre pensei que vivíamos no meio de uma
guerra biológica e o Brasil era uma grande cobaia, o maldito
local de testes, alvo dos países de primeiro mundo. Afinal,
... eu não sou burro, é claro que eu sabia que não de onde será que vinha tanta doença? Eu sabia que isso ia
nhamos a estrutura necessária para conter uma acontecer, uma hora ou outra. Era só questão de tempo.
proliferação como essa. Os hospitais de hoje não estão Como o secretário bem citou "nós já enfrentamos de tudo",
muito diferentes de quando tudo isso começou. Não dá pra sempre fomos 'fortes'. A verdade que ele não queria
jogar a culpa na inves da militar de contenção. As admi r é que a população tentava sobreviver na medida do
ins tuições de saúde pública já estavam em ruínas há possível, enquanto o país empurrava esses problemas com
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