O mundo dos netos dos netos de Keynes
xistem textos que volta e meia desejo revisitar. Penso neles como penso nas músicas, paisagens e cidades que nos acolhem e surpreendem toda vez que a elas retornamos. São obras dotadas de fecundidade inesgotável. Tesouros de infinita sugestividade.
Nesses dias de sombra e apreensão globais, quando o espectro de uma Grande Depressão ronda a imaginação de tantos, resolvi aproveitar a quarentena para revisitar "As Possibilidades Econômicas para os Nossos Netos" -o belo e provocador ensaio publicado, em 1930, pelo economista britânico John Maynard Keynes e por ele escolhido para encerrar a coletânea "Essays in Persuasion" do ano seguinte.
Não se trata de artigo técnico de economia, mas de uma reflexão abrangente sobre o lugar do econômico e da ambição material na existência humana. O real e o ideal. Quem nos fala aqui não é o macroeconomista da "Teoria Geral", mas o filósofo moral e político que sempre dedicou boa parte de seu tempo na Universidade de Cambridge ao convívio e interlocução ativa com filósofos como Bertrand Russell, G.E. Moore e Wittgenstein.
Trata-se de um texto que se eleva sobre as ruínas da Grande Depressão, os martírios da Primeira Guerra (e o pavor diante da iminência de sua continuidade) e das aspirações revolucionárias e reacionárias que animavam a vida política no início do século 20. Retornar a esse escrito de Keynes é uma forma de lançar luz sobre os dramas da existência neste novo milênio, em plena pandemia, desassistido no que se refere a ideias de envergadura para o florescer do espírito humano e propostas efetivas de encaminhamento da vida em sociedade.
O argumento central do ensaio divide-se em três partes: presente, passado e futuro. Keynes faz um apanhado do quadro depressivo da época e se insurge contra os dois tipos de pessimismo que percebia ao seu redor: o dos revolucionários (para quem só uma ruptura violenta com o sistema oferecia salvação) e o dos reacionários (para quem qualquer ação inovadora era risco de ruptura do sistema). A crise, sustenta, não era o reumatismo senil de um mundo caduco, mas sim as dores de crescimento de uma fase de rápida mudança em que as instituições e políticas não puderam acompanhar o ritmo vertiginoso das transformações pelas quais as ações e o ambiente prático vinham passando.
O propósito do ensaio, porém, não era discutir o presente e o futuro imediato. Era imaginar o que poderia vir mais à frente -indagar prospectivamente sobre o tipo de mundo para o qual tenderia a humanidade.
Ultrapassada a tormenta e retomada a trajetória da bonança, inquiria Keynes, "quais são as possibilidades econômicas para os nossos netos?"
Keynes foi um pensador que não abria mão da filosofia moral como base da reflexão sobre temas materiais e pragmáticos. Antes de cotejar cifras ou aventar chances de sucesso para determinados planejamentos macroeconômicos, perguntava-se sobre o destino dessas ações na felicidade real das pessoas. Importava-lhe, portanto, a questão humana, não a engenharia dos números ou os gráficos de desempenho financeiro. As diatribes econômicas e as sinuosidades estatísticas deveriam, necessariamente, responder às demandas por bem-estar dos indivíduos e suas coletividades.
Keynes era defensor convicto da felicidade humana como objeto de investigação filosófica e como alvo preferencial da política, tanto nos desdobramentos da sociedade civil quanto nas articulações entre Estado e estruturas de poder. Ele acreditava que a crise econômica de seu tempo iria passar e daria vez ao dobrar e redobrar do padrão médio de vida nos países desenvolvidos, filiados às democracias liberais, consortes da acumulação de capitais, do empuxo técnico-científico e das inovações no campo das ideias e práticas desde meados do século 18.
O progresso traria a libertação do ser humano em relação ao fardo excessivo do trabalho e lograria "tempo livre". No futuro, apostava Keynes, seus netos poderiam dedicar a vida a valores que não fossem, primordialmente, os de cunho material. Duas ou três gerações após Keynes a humanidade estaria livre dos problemas econômicos.
Emprego e renda seriam universalizados. A angústia financeira teria fim. A incerteza em relação ao amanhã deixaria de ser um fantasma. A competição desenfreada seria uma triste imagem de mundos perdidos, quase bárbaros, que as democracias do futuro transformariam em lembranças imemoriais. Estaria extinta, enfim, a patológica idolatria ao dinheiro, e a experiência da vida se fartaria do amor, das artes, da admiração pela natureza e da cultura como busca pela perfectibilidade.
Ao terminar a releitura do texto fiquei pensando no que diria Keynes hoje em dia, à luz não só do que se passou desde sua época, mas da crise em que estamos metidos.
Habitam o mundo, hoje, os netos dos netos de Keynes. De fato, houve crescimento exponencial das técnicas e da fabricação de produtos sofisticadíssimos, que, para desespero dos humanistas sobreviventes, aprisionam as pessoas num mundo desigual, opressivo, em redes de ódio, mentira e inveja. A ciência alcançou o espaço, curou enfermidades milenares, organizou cidades e países inteiros, mas, ainda assim, mesmo em meio a uma pandemia, é atacada por terraplanistas e por uma obediência cega ao modelo de organização social da economia de mercado, o qual, a despeito das boas intenções de Keynes e das intervenções de política fiscal do Estado, não livrou a humanidade da paixão doentia pelo dinheiro nem superou a hipercompetitividade que corrói laços de solidariedade, agrava desigualdades e destrói o meio ambiente.
Estamos mais longe hoje da utopia keynesiana do que quando ela foi formulada.
Os hoje avós aos quais se dirigiam as otimistas previsões de Keynes lidam com o desespero. O mundo que traria o tempo para ser usado em razão do melhor do que há em cada humano escraviza pela servidão que oprime rebeliões; mercantiliza corpos, ideias e tudo à volta; vale-se das inovações tecnológicas para obstruir a democracia e favorecer novas ondas de autoritarismo.
Os netos dos netos de quem escreveu em 1930 podem jamais ter "tempo livre", desumanizados por dilemas da mera sobrevivência. Que mundo vai emergir no pós crise? Continuaremos perpetuamente condenados ao túnel da necessidade? Pendurados ao "problema econômico" como preocupação obsessiva e perene da espécie humana? Keynes previu menos trabalho, mais felicidade. A depender dos netos de seus netos que estão no poder, não haverá nem trabalho, nem felicidade.
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