Ed. 321 - completa Novembro / Dezembro - 2020 | Page 76

OPINIÃO

Colunista

Vacinação e Anti-Intelectualismo : como é possível negar o inegável e substituir a ciência por crenças ?

( Trecho do livro : Tributação , desigualdade e mudanças climáticas : como o capitalismo evitará seu colapso . Ed . Brazil Publishing : Curitiba – PR . 2019 .)

Quando se está diante de um

tema da relevância como saúde pública , o que a história pode ensinar é que aqueles , desprovidos de conhecimento técnico e científico , respeitem e levem em consideração estudos construídos dentro do mais rigoroso ambiente acadêmico . A ignorância é uma característica natural de todos os seres humanos . Obviamente , ignora-se infinitamente mais do que
Marciano Buffon pós-Doutor , professor da Unisinos marciano @ buffonefurlan . com . br
se tem conhecimento . Se a tarefa de construção do saber for exitosa , cada indivíduo conseguirá , ao longo de sua vida , conhecer um percentual ínfimo daquilo que já é assimilado pelo dito “ conhecimento científico ”. Reconhecer essa condição pressupõe a característica que mais distingue o ser humano das outras espécies : a inteligência .
É certo , pois , que a própria ciência ainda está impregnada de incertezas e os consensos de outrora , hoje , são questionados e , muitos deles , desconstruídos . Todavia , há algumas formulações que sobreviveram a testes de confirmação , há anos de contestação e mostraram-se procedentes , fazendo com que os erros , fundados na ignorância passada , não venham a se repetir . Esse é o curso natural da história e , felizmente , há um constante e irrefreável avanço no campo científico , o qual , por vezes , causa verdadeiro mal-estar , diante da percepção da precária condição humana , que tem na finitude sua única e verdadeira certeza a preencher o futuro .
Ocorre que , para se refugiar da natural incerteza e para garantir uma indefinível “ paz de espírito ” ( tão cultuada no universo individualista das redes sociais , à mercê do vazio contido nos próprios termos ), a ciência vem sendo literalmente atacada , gerando-se uma espécie de anti-intelectualismo , em que o ignorante orgulha-se de sua própria condição e vê o intelectual como seu inimigo , uma vez que esse põe em xeque as crenças inabaláveis cultuadas por aqueles , a partir de um mito . Na frase bem conhecida e multicitada de Isaac Asimov , “ o anti-intelectualismo tem sido uma corrente constante no seu caminho sinuoso através de nossa vida política e cultural ,
alimentada pela falsa noção de que a democracia significa que a minha ignorância é tão boa quanto o teu conhecimento ”.
Como lembra Philipp Lichterbeck , ao longo da história , ocorreram momentos de retrocesso . Jared Diamond os descreve bem em seu livro Colapso : Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso . Motivos que contribuem para o fracasso são , entre outros , destruição do meio ambiente , negação de fatos , fanatismo religioso . De certa maneira o anti-intelectualismo atual lembra um pouco os “ tempos da Inquisição , quando o conhecimento em si já era suficiente para tornar alguém suspeito de blasfêmia ”.
No campo da medicina , entre tantos temas , é inadmissível e incompreensível que haja um crescente movimento , num plano internacional e também local , contrapondo-se à vacinação , como eficaz forma de prevenção de doenças epidêmicas . Isso é algo que remonta o início do Século XX no Brasil , quando o governo Rodrigues Alves , por recomendação de Oswaldo Cruz , determinou a vacinação da população do Rio de Janeiro contra a varíola , dando ensejo à denominada Revolta da Vacina . Sem maiores delongas , há um preço muito elevado a pagar quando a crença desafia a ciência . Especificamente , no caso do Brasil , alguns sanitaristas têm apontado que a resistência à vacinação tem resultado no reaparecimento de doenças outrora controladas , como sarampo , rubéola e poliomielite , reproduzindo nos trópicos as graves consequências constatadas num plano internacional . Um caso recente chama tragicamente a atenção : a morte por H1N1 de uma conhecida apresentadora de televisão nos Estados Unidos , que havia anteriormente se manifestado contrária à vacinação .
Enfim , neste momento crucial da história , não é possível que seja reeditada no Brasil a Revolta da Vacina , ocorrida a mais de um século , agora em oposição a uma possível e desejável campanha nacional de vacinação contra o coronavirus . Desnecessário dizer que isto está condicionado a uma aprovação pelos órgãos responsáveis para tanto . Caso contrário , assume-me o risco de embarcamos numa espécie de “ máquina do tempo ” e viajar para o passado - e lá permanecer . A história cobrará um preço altíssimo , se a opção for essa ...
76 • novembro | dezembro