E-Vista Ed. 01/Ano 01 | Page 37

O Amante “Muito cedo foi tarde demais em minha vida”. A frase de Marguerite Duras incrusta em meu pensamento. Vida e forma definidas. É isso. Eu me assemelho, recorro a ela, introjeto-a em minha alma. Muito cedo, já era tarde demais. Pedro dorme ao meu lado. Seu sono é interrompido por sons guturais, murmúrios, as- sovios, palavras desconexas. Queria sonhar, mas diante de meus olhos abertos, a realidade me assombra. Muito cedo. Eu tinha dezoito anos quando o conheci. Victor era mais novo que eu e talvez por isso, fosse mais ousado, não sei dizer. Sei que ele saiu do final do corredor do alojamento dos estu- dantes universitários, lá onde ficava o banheiro. E veio assim, torso nu. Enrolado numa toalha branca a es- conder-lhe o quadril másculo. Era bonito, que Diabo. Olhos cor de amêndoas, cabelos anelados domados pela água, magreza típica da juventude naqueles dias. Era um tempo diferente. Não tinha isso de corpo sarado, músculos definidos, nada disso. A beleza era assim, natural, sem máscaras ou porquês. Eu estudava, sentada à mesa do alojamento, esperando por meu namorado que poderia retonar em algum momento, ao término do dia letivo da faculdade. Mas foi ele quem chegou primeiro em minha vida. — Prazer, meu nome é Victor. Levantei meus olhos do texto. Olhei para aquele que me dirigia a palavra. O rosto anguloso, gotículas de água sobre o ombro, a toalha. — Meu nome é Camila. Mas meu namorado não gostará disso, pode ter certeza. Abaixei os olhos para o caderno sobre a mesa de madeira — aquele que era o maior móvel do quarto. Ao fundo, encostados às paredes, beliches e na outra extre- midade, um armário de três portas. — E daí? Nem sei quem ele é e não me interessa, — repon- deu — Posso me sentar? — Desde que não me interrompa, por favor, sente-se. Tem certeza de que está alojado nesse quarto? — Com certeza. Mas aqui é alojamento masculino. Você que não deveria estar aqui, não acha? — Tem razão, desculpe. Voltei a me concentrar na leitura, mas se assim o fiz, de nada resultou. Sequer lembro-me do que estudava na ocasião, mas recordo- -me das pernas dele, cruzadas, à minha frente, no vão revela- do pela toalha. — Posso pegar uma folha de papel? Não vou olhar, não quero olhar. — Pegue. E, alguns minutos depois, ele voltou a me interromper. — É seu. — O que? Ele me entregou a folha. Contrafeita, analisei o objeto que ele insistia em me entregar. Era minha imagem ali, no tracejar do grafite. Linhas firmes. Contínuas. Precisas. 37 Michelle Louise Paranhos Sim. Era eu. Aquela continua sendo eu mesma. Naquele desenho e aqui, em meu coração. Não sei que fim levou aquele desenho de minha alma, mais de trinta anos depois. Pedro resmunga ao meu lado. — Apaga a luz desse abajur e vai dormir. — Estou lendo. — Nem livro tem em mãos, apaga essa luz, por favor. — Estava lendo no tablet, em e-book, sabe? — Por isso mesmo, Camila, apague essa luz, ao menos. Dei- xe-me dormir, pelo amor de Deus, Camila! Está tarde. É verdade. Já é tarde demais em minha vida. Nunca mais o vi, saí da faculdade e nos perdemos no mundo. Até reecontrá-lo anos depois. Por acaso. Quando foi que ele me deu o livro O Amante, de Marguerite Duras? Nem faço ideia. Nem que fim levou o exemplar. Faz tanto tempo. Aquela edição especial em Capa de Cartão possuía uma con- tracapa extra onde, na ilustração, os amantes trocavam um beijo. Dentro do livro, acima do título impresso, estava escrito à caneta esferográfica, em letras firmes, contínuas, precisas. “Quero cordões do infinito na imensidão do tempo, para que possamos nos alcançar sempre que um do outro se lem- brar”. Quando rompemos, eu estava na casa de meus pais e a cam- painha tocou. — Vim entregar suas coisas que estavam em minha casa. Ele devolveu o pôster imenso, que fiz para ele, de presente, num estúdio fotográfico. Ficava no interior de uma moldura dourada, pendurada na parede. Abaixo da moldura, a cama dele, onde nos encontramos e nos perdemos tantas vezes. Esse pôster de mim mesma ainda o tenh o comigo, embora nunca mais me pertença. Sempre será dele. — Não devolvo fotos e livros. São meus — retruquei. Vitor sorriu condescendente. Não esperava que eu dissesse o contrário. Perdemo-nos e nos reencontramos por trinta anos. A última vez, anos atrás, ele se despediu de mim. — Por favor. Ao menos, me abrace uma última vez — mur- murou em súplica. Muito cedo era tarde demais em nossas vidas. Apago a luz do abajur, deixo o tablet sobre o criado mudo e decido continuar amanhã a leitura. O Amante. Fecho os olhos e sonho que estou descendo de balsa, na tra- vessia sobre o Rio Mekong, em Saigon. E Victor está do outro lado do rio, me esperando. Conto inspirado no livro O Amante de Marguerite Dumas E-Vista