Dragões #446 Jan 2024 | Page 29

FUTEBOL
Num tempo em que ainda não havia competições europeias de futebol , os adeptos do desporto em Portugal tinham poucas oportunidades para ver jogar os craques das grandes equipas internacionais , que alguns imaginavam conhecer graças a publicações como a revista Stadium . As partidas da seleção nacional e os encontros amigáveis com equipas estrangeiras eram os momentos de exceção que permitiam aos aficionados tomar contacto direto com a realidade do que se passava noutros países . Estes desafios particulares assumiam , por isso , uma importância quase transcendente para os clubes , atletas e adeptos , pelo que não é de estranhar a expectativa com que foi encarado o FC Porto-Arsenal que se disputou no Estádio do Lima a 6 de maio de 1948 . O entusiasmo que envolveu esta partida era plenamente justificado . Menos de uma semana antes da sua realização , a 1 de maio de 1948 , o Arsenal tinha recebido o Grimsby Town no mítico
Highbury Park . A vitória dos londrinos por 8-0 colocou um ponto final num trajeto notável no campeonato inglês , que culminou com o sexto título nacional dos Gunners , todos conquistados nas 12 temporadas anteriores . A equipa do Norte de Londres tinha sido protagonista de uma revolução tática , sob a liderança do treinador Herbert Chapman , que desenvolveu o sistema que ficou conhecido como WM e influenciou decisivamente o curso do futebol europeu nas décadas seguintes . Foi , portanto , com o estatuto de campeão daquela que já era a mais importante liga de futebol do mundo que o Arsenal aterrou em Lisboa nos primeiros dias de maio de 1948 . Na agenda estavam dois jogos : um com o Benfica , no Estádio Nacional , onde menos de um ano antes a seleção inglesa tinha batido a portuguesa por 10-0 ; e outro com o FC Porto , no Estádio do Lima , casa emprestada aos azuis e brancos pelo Académico FC . O primeiro impacto dos britânicos em solo português foi brutal . O Benfica foi batido sem apelo nem agravo por 4-0 e a superioridade dos londrinos foi bem vincada pela imprensa da época : “ Os mestres numa lição magistral ”, titulou a Stadium . A crónica dada à estampa nesta publicação não deixa margem para dúvidas : “ É difícil para quem está habituado a ver futebol só em Portugal dar uma ideia do jogo do Arsenal . […] O que interessa é frisar a distância a que ficou o futebol português do Benfica … Os ingleses foram mestres ; nós , os discípulos ”. A projeção da partida com o FC Porto , a realizar três dias depois , era tudo menos otimista : “ Embora se conte de antemão com uma derrota , há a certeza de que os campeões nortenhos não deixarão de se mostrar bons adversários ”. Na realidade , os portistas eram encarados como uns privilegiados , não porque iam jogar com o Arsenal , mas porque iam ver o Arsenal jogar : “ Aos portuenses será facultada uma ocasião de ver uma grande equipa ”. O que se passou num cheiíssimo Estádio do Lima a partir das 18h15 de 6 de maio de 1948 superou todas as expectativas . Aos 9 minutos , Araújo desferiu um remate potente que entrou junto ao ângulo superior esquerdo da baliza dos ingleses . Aos 18 , Correia Dias dobrou o resultado com um remate a meia altura . Dois minutos depois , o mesmo Correia Dias assinou o terceiro golo . A assistência , de que fazia parte uma criança de dez anos chamada Jorge Nuno Pinto da Costa , estava atónita . Ainda a primeira parte não ia a meio e já o FC Porto batia por 3-0 a melhor equipa inglesa , provavelmente a mais forte do mundo . Na segunda parte , na sequência de duas faltas que o cronista da Stadium considerou discutíveis (“ dois castigos duvidosos ”), os Gunners reduziram para 3-2 , mas os portistas , ainda que esgotados pelo esforço despendido num jogo muito exigente , conseguiram assegurar um triunfo memorável . As palavras publicadas na Stadium a 12 de maio parecem , à luz do que se passou nos meses seguintes , de certa forma premonitórias : “ Há resultados que valem um título ”. Aquele , no próprio dia , não valeu . Um grupo de sócios , contudo , considerou que uma vitória tão brilhante não poderia deixar de ser perpetuada com toda a dignidade . Foi constituída uma comissão que durante meses reuniu os fundos que financiaram a encomenda de uma verdadeira joia à histórica ourivesaria Aliança , na Rua das Flores : um troféu com 90 centímetros , depositado no interior de um escrínio com dois metros e 80 centímetros de altura ; no conjunto , 250 quilos de madeiras finas , ouro , prata ( 130 quilos , que à cotação atual valem 56.870 euros ), esmalte , cristal e veludo . A Taça Arsenal foi entregue à direção do clube a 21 de outubro de 1949 . Mais de sete décadas depois daquele triunfo , continua a poder ser apreciada no Museu FC Porto .
29 REVISTA DRAGÕES JANEIRO 2024