Date a Home Magazine | Mar / Abr 2014 | Page 19

Vestir a paixão. Em 2012 o mundo mitológico encontrou-se comigo, numa das Avenidas Novas de Lisboa, cúmulo do bulício, em hora de ponta. Na altura trazia em mim o ceticismo que a vida se encarregara de produzir como apêndice de um estar urbano, a crença era uma fraqueza no mundo da exigência laboral e eu não podia vacilar. Dessa forma, acomodada a pressupostos bem definidos, percorri os últimos metros da minha pretérita existência, de caminho certo e rumo lógico ao destino.

Lembro-me como se de ontem se tratasse, os primeiros passos numa dimensão desconhecida. Tinha sido seduzida pela ideia de enamorar errantes perdidos através do poder de uma pena eloquente, como se de um apelo se tratasse ao meu espírito romântico, escondido pela amurada rotineira do dia-a-dia. Deixei-me levar pelo coração, sem esperar pela voz analítica da razão. Num ápice descobri-me rodeada de faces expectantes, vitimas do mesmo fogo apaixonante.

Olhei, insuspeita, os convidados, residia neles um misto de excitação e afetação, como se o contexto fosse a assunção perfeita do conceito. O objetivo

era Arrendar Lisboa Com Paixão e os semblantes revelavam o feitiço que a ideia criava: andar pelas sete colinas de Lisboa, quais transeuntes, de olhar afiado à oportunidade de descobrir um universo de casas apaixonantes, em lugares apaixonantes, para pessoas apaixonadas. Ter o privilégio de, em nome desse universo, escrever ao coração de egos à procura de um teto que os ame.

Foi nesse dia que descobri que nas minhas costas residia mais do que a responsabilidade em pros-perar, duas asas se erguiam para fazer voar o sonho do arrebatamento. Foi nesse dia que a crença invadiu o meu mundo, vazio e cinzento, e cobriu-o de tons quentes de paixão. Tinha ganho um propósito, um desígnio e abracei-o com devoção, a mesma que vira no hall do escritório, momentos antes, agora propriedade da minha criação.

Hoje o mundo conhece-me como cupido, intér-prete da arte de apaixonar. As minhas setas são aparas, que utilizo para revelar a avidez residente no objeto de desejo. É nas palavras escritas que urge a música de sedução, enquanto testemunhos invadem de coração na mão atraídos pela casa exposta, atraídos pela revelação.

Desde que vesti a profissão cruzei-me com mil faces, umas de cores apaixonadas, outras tingidas de razão, no entanto, em todas se fazia ouvir uma voz divina de corpo desigual ao perfil apresentado, a voz do desejo de arrendar uma casa que lhes falasse ao coração. Os semblantes fechados, derrotados pela urgência dos dias, deixavam-se vencer pelo espaço cantado e a eles dedicado sem segunda intenção. Magia, digo-me sem intervalo.

Às vezes a vida apresenta-me um vislumbre do passado, o ceticismo que outrora partilhara a minha existência, descubro-o no olhar de quem cruza o meu caminho, no gesto descrente de quem percorre um destino. A “cupidologia” tem uma capacidade ímpar de reinventar um estar. Sim, as asas não são verdadeiras, são metáforas à liberdade, ao desejo de apaixonar. Não voo pelo etéreo, nem junto casais pela ponta de uma seta perfumada pelo odor da paixão, mas viajo apaixo-nada pela cidade velha de Olisipo, cruzo os céus da metrópole, deambulo sem rumo pela urbe de Lisboa, e se o dia se apresentar a preceito tenho a fortuna de assistir à união da arquitetura a um olhar inebriado pela criação, e ir para casa escrever poesia sobre a invenção. Tudo isto é Arrendar Com Paixão.

Coisas De Cupidos | CRÓNICA

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