Ser Cupido. Assiduamente, aqueles, que abraçam a exigente tarefa de encontrar a casa perfeita a quem a procura, apresentam-se como cúpidos, na terra divina do Arrendar Com Paixão. Não porque somos pessoas aladas – falo por outros e não por mim – mas porque carregamos ás costas as setas da responsabilidade de descobrir a paixão. A palavra cupido, associada ao amor, deriva na realidade do latim “cupido”, sinónimo de desejo, algo intrínseco ao sentimento mais puro de todos, mas diferente na génese. Sim, nós proporcio-namos desejo, somos vendedores de paixão e te-mos por missão unir os apaixonados e os céticos pela guarida perfeita às suas ambições.
Enquanto cupida, fiel às minhas origens, respeito o mito na sua essência e visto a missão de dar início ao enredo de desencadear um conjunto de even-tos que levam casais, indivíduos e famílias a apai-xonarem-se, por obra e graça do gesto, pela casa dos seus sonhos.
Invariavelmente, testemunho o brotar da paixão, aquele enfatuamento irracional, inexplicável àqueles que nos rodeiam, mas cheio de razão den-tro de nós. Os olhos brilham toldados por lágrimas que apenas a felicidade etérea produz. A voz, rouca de emoção, revela o estado de um âmago conquis-
tado e derrotado pela paixão, enquanto palavras de assombro e eloquência ditam um cortejo digno de um romance de Camilo Castelo Branco. Os gestos, quedos e céticos, vencem-se ao passar pela amurada feita em ombreira da porta do objeto de desejo. A brisa da novidade deixa cair a condes-cendência para se ocupar de um misterioso arrepio que percorre as costas, qual fio de uma navalha deliciosa, pronta a servir a vontade.
Sei hoje que arrendar uma casa é como desinibir o exercício de uma relação, e assistir ao seu desen-rolar pela primeira vez é um momento ímpar, resi-dente entre outros de importância maior na vida de quem ama perdidamente. Se observar a paixão brotar entre um casal é obra reservada à cinemato-grafia, e romances de cordel, a função de cúpido estende-me o tapete vermelho às demais mani-festações de desejo, capazes de contrariar as teses mais céticas.
É magia observar esta semiótica, uma relação invi-sível ao mundo mas indivisível do mesmo, que faz de nós – cúpidos – privilegiados. O processo, que nos conduz à observação, esse, é bem menos sujeito à magia do momento, envolve umas quan-tas viagens a mando de “Vénus” e muitas falsas “Psiques” pelo caminho, sempre com o fado de encontrar o porto de alguém. Com as ruas como linhas de um destino anunciado e Lisboa, eterna, tela ao nosso mantra de paixão.
Ser a personificação do mítico deus anafado fez de mim consciente de vários estágios do pathos, na paixão, pelo casamento entre pessoas e casas. A revelação de que a nossa capacidade de amar não se resume ás coisas animadas, que se estende aos objetos da nossa história, da nossa cultura, àqueles metros quadrados de tábua corrida, janelas de peito alto, fachos de luz de um sol único, é a razão que nos faz erguer diariamente com esperança no sucesso. Aquela simetria do padecimento senti-mental.
Hoje caminho sem questionar o destino que me espera, tenho a responsabilidade de elevar aos sonhos a missão mitológica de encontrar a ostra a cada voz perdida. Um desígnio que muitos substi-tuiriam sem reservas pelo enfado da rotina laboral e de tronos sem títulos, pois a divisa do sentimento é hoje batismo de loucos num mundo dominado pela razão, é preciso “ser” coragem e sensibilidade para assumir que a doutrina da pai-xão é a única charneira comum da história.
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Coisas de Cupidos | CRÓNICA