CULT 167 CULT 167 - ABR 2012 | Page 14

DOSSIÊ

vê passar um misterioso carro de uma autoridade, que atrai os olhares dos tran-seuntes, especialmente do ex-soldado Septimus, que servira com bravura na guerra e se via progressivamente tomado de alucinações a ponto de, nesse instante, ser conduzido pela jovem esposa italiana ao consultório de um médico famoso.

Logo adiante, um aeroplano começa a escrever com fumaça nos céus o nome de uma nova guloseima, que é

na frente de guerra que lhe traz insistentes notícias dos mortos e pelos passarinhos que chilreiam em grego, Septimus conhe-ce o derradeiro e terrível segredo: o que as gerações sucessivas legam às outras é apenas desprezo, ódio e desespero.

Esse relance do mais extremo so-frimento, que, paradoxalmente, se tra-duz pela incapacidade de sentir e pela perda de sentido do mundo, se con-centra em grau máximo nas alucina-ções de Septimus, mas não está apenas

nos seus pensamentos e sentimentos, que se aprofunda mais ou menos se-gundo elas reapareçam com maior ou menor constância ao longo da narrativa.

Assim, o desdobramento afetivo e analítico é especialmente desenvol-vido em relação a Clarissa, dissecada em suas sensações mais rápidas ou mais intrincadas, e tem em Peter a sua correspondência mais imediata, pois ambos partilham de fortes lembranças comuns de seus tempos de juventude e enamoramento.

E aqui, curiosamente, o fluxo se de-tém, ou sofre uma contracarga estática. Pois a lembrança de ambos se centra num verão inesquecível passado na casa de campo dos pais de Clarissa, com ce-nas muito bem marcadas, como aquela do instante em que Peter soube inevi-tavelmente que perderia Clarissa para Richard, ou aquela em que Clarissa se percebeu apaixonada pela amiga Sally, que veraneava com eles.

Nesse ponto, já não há sucessão: o que se impõe à narrativa são momen-tos, instantes definitivos, singulares, que impressionam para sempre a retina, a memória e os sentimentos que as perso-nagens carregam ao longo da existência.

Mas há dois outros movimentos a serem incorporados a essa dinâmica: justamente aqueles que dão a mais gra-ve (e a mais alta) dimensão do alcance a que chegou a literatura de Virginia Woolf.

Se na análise interior das experiên-cias Clarissa e Peter se compõem como uma dupla, em que as memórias se complementam ou contradizem, o ver-dadeiro duplo, entretanto, o elemento perturbador de toda a ordem inscrita na experiência do tempo e nas convenções dos costumes, resumida naquele dia preciso da festa, é composto pela per-sonagem de Septimus, o jovem herói de guerra que se vê progressivamente, irremediavelmente, abandonado pela esperança - representada em primeiro lugar pela sua esposa apaixonada e, por fim, pelo médico que o quer internar, in-vestido da autoridade inabalável de uma pretensa proporcionalidade científica.

Alertado, contudo, pelas intensas lei-turas de Shakespeare, pelo amigo morto

santes, enquanto Clarissa chega de vol-ta a sua casa e é visitada sem aviso por Peter, o qual é convidado para a festa da noite e logo se despede, tomando a direção de seu hotel. Uma vez na rua, entrega-se à excita-ção de seguir uma jovem desconhecida até a porta de seu destino, passa pelo mesmo Septimus, que ainda segue em direção ao médico, dá uma moeda a uma mendiga devastada que canta o amor ancestral, etc. Quer dizer, trata-se aqui de um flu-xo de comunicação de acontecimentos praticamente simultâneos que prolife-ram a partir do fluxo de sucessão cro-nológica inicial. A dinâmica ganha proporções defi-nitivamente vertiginosas quando incor-pora um terceiro fluxo: cada uma das personagens que surgem seguidamente na narrativa não são apenas mencio-nadas como pessoas que agem à nossa vista desta ou daquela maneira, mas são arrebatadas por um mergulho interior

nelas. O mergulho interior nas várias personagens, mesmo as mais ligeiras, também toma dele a mesma direção infernal, apenas se detém à beira do precipício, por vezes até num lampejo de felicidade ou de esperança, como a que sente a moça do interior que chega a Londres para assumir um cargo na loja do tio.

Mas o leitor de Mrs. Dalloway não tem direito à mesma inocência. Movido pela dinâmica que o coloca na linha do tempo, distende-a por vidas diversas e a faz reverberar, abaladamente, pelos eventos, para então arremessá-la ao passado, fazendo com que se identifique e se detenha em seus momentos decisivos.

Esse leitor sabe - seja lá qual for o ponto do passeio em que esteja - que os seus passos o dirigem para o breu onde a insignificância da vida se revela mais real que ela.

Alcir Pécora

é professor de teoria literária na Unicamp

Na narrativa há instantes definitivos, singulares, que impressionam para sempre a retina

O que as gerações sucessivas legam às outras é apenas desprezo, ódio e desespero, conclui o romance