Contemporânea Contemporânea #8 | Page 20

Há outros aspectos relevantes do ideário tropicalista que levaram à ampliação da temática (e do léxico) da canção popular, como a assimilação de signos de consumo (como o “oval da Esso” em “Paisagem Útil” e a Coca-Cola em “Alegria Alegria” e “Joia”), e à discussão a respeito do gosto e dos critérios de valoração da canção. Mas as intervenções mais radicais da produção tropicalista, as que, mais do que choque e discussão, produziram um forte estranhamento, foram levadas a cabo por Caetano Veloso em Araçá Azul (1973), seu primeiro LP individual após o retorno do exílio.

As condições de produção do álbum foram excepcionais, como o artista narra em seu Verdade Tropical:

“Hospedei-me num hotel colado ao estúdio Eldorado – o único do Brasil que, então, tinha oito canais – e comecei a improvisar peças muito livremente concebidas. André Midani, o presidente da PolyGram Brasil, (…) concordara em deixar-me sozinho com o técnico e seu assistente, sem nem sequer receber visitas de quem quer que fosse da gravadora”.

O resultado obtido não apenas tensiona os parâmetros convencionais da canção como, por vezes, os ultrapassa. Assim ocorre em “De Conversa”, uma exploração das melodias da fala esvaziada de sua carga semântica, executada por várias vozes superpostas. Superposição e justaposição são ainda os procedimentos decisivos em “Sugar Cane Fields Forever”, onde um apanhado de sambas de roda do Recôncavo é entretecido por trechos de canções e falas e por intervenções da orquestra. “De Palavra em Palavra” invade com radicalidade a seara da poesia concreta (tangenciada ainda na canção “Júlia/Moreno”). À “Épico”, um aboio urbano, o arranjo de Duprat traz grandeza e acirra o insólito. E tudo o mais, no disco, tem a marca do inconvencional.

Se o método premeditadamente imeditado de criação por um lado manteve o compositor

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ARTE E CRÍTICA

disponível para as solicitações do momento, por outro cobrou seu preço. O disco soa por demais heterogêneo e as questões que suscita nos parecem pouco amadurecidas. Na comparação com Ou Não, de Walter Franco, lançado à mesma época, Araçá Azul mostra-se aquém, tanto em radicalidade quanto em organicidade, sem que isso, entretanto, lhe retire importância.

A reflexão nos protege de fazer da vanguarda um fetiche. Já Parmênides sustentava que o inesperado faz com que nossos corações pulsem com mais alegria. A atitude de vanguarda, desafiando os hábitos de fruição da arte é, nesse sentido, sempre bem-vinda. Mas ela por si só não basta: é quando viceja como superação das questões artesanais e expressivas, e não se alicerça no meramente conceitual, nem se sustenta no meramente quantitativo, que o gesto criativo encontra sua maior potência. Assim, em seu disco imediatamente posterior, Joia, Caetano avança por meio de alguns dos caminhos propostos pelo Araçá Azul, obtendo um resultado mais orgânico e vital, embora também mais discreto.

De todo modo, seja estabelecendo Araçá Azul como marco final dos “anos heroicos” do Tropicalismo, seja postando esse marco um pouco adiante, como fazemos, a partir de meados dos anos 1970 as inovações aqui inventariadas se ausentam da obra de Caetano e Gil. O primeiro alega que o impulso que o conduziu às experiências de Araçá Azul é o mesmo que o levou para longe delas, ou seja, que sua readequação aos critérios de mercado foi uma imposição de sua integridade artística. Tal afirmação se torna mais inverossímil à medida em que Caetano nunca faz menção a questões comerciais, como se um programa de vanguarda pudesse ser instaurado no seio da indústria cultural