Cidade Nova 5ca27579c123d679843818pdf | Page 2

“quaresma à brasileira” é um meio termo entre o oficial e o popular, o litúrgico e o devocional, o religioso e o pagão. Tudo isso, imbuído de identificação com sofrimento, sacrifício e de- sejo de purificação. Para o historiador cearense Tiago Geyrdenn, professor de História da Igreja na Faculdade Ca- tólica de Fortaleza, a cultura popular brasileira vivida na quaresma é uma “expressão religiosa popular, assimilada e expressa como herança dos tempos coloniais, imperiais e principalmen- te como resquício das Irmandades, por exem- plo, as Procissões do Encontro de Nossa Senhora das Dores com Bom Jesus dos Passos, devoção muito comum no período colonial, presente no estado do Ceará em posse do povo simples que ainda hoje é introduzida como costume quaresmal”. Em Juazeiro do Norte (CE), inclusive, conser- varam-se grupos de penitentes paramentados de preto que, nessa época do ano, se autoflagelam como sinal de penitência e arrependimento. Já na região Norte, especificamente no Pará, a mesma procissão ganha novas característi- cas. Como conta a missionária local Ana Tava­ res, “no Pará, as expressões culturais quares- mais se dão especialmente nas Procissões dos Passos ou do Encontro e na ressignificação da dor e do sofrimento. Em Belém, por exemplo, a procissão da imagem de Nossa Senhora das Dores, que sai da Igreja de São João Batista, na Cidade Velha, e se encontra com a imagem de Bom J ­ esus dos Passos, na Igreja das Mercês, de- pois de sair da basílica de Nazaré, é um fenô- meno que une cristãos católicos e adeptos das religiões de matriz africana”. Tavares reforça que o episódio se tornou “a expressão maior do encontro de duas matrizes religiosas em um único ritual, uma vez que, durante a procissão e as missas, os de religião afro acendem suas velas e fazem suas oferendas. É como se o signi- ficado do encontro aqui fosse não somente das imagens em si, mas das devoções, das religiões e da fé de cada pessoa que ali sente que pode se manifestar sem medo de desavenças”. Voltando ao Nordeste, em Alagoas, essa di- mensão também ultrapassa as fronteiras da tradi- ção católica com os indígenas da tradição Panka- raru, que fazem suas penitências exatamente nesse período, visitando santuários, cruzeiros e casas onde quer que solicitem seus rituais. Logo ao lado, em Sergipe, a Romaria de Nos- so Senhor dos Passos, em São Cristóvão, a 19 quilômetros da capital, Aracaju, é considerada a manifestação cultural mais emblemática do Estado, com seus 200 anos de história. Com momentos de penitência e fé, tudo acontece no terceiro domingo da quaresma, justamente porque nesse dia foi encontrada em um cai- xote, no rio Paramopama, a imagem de Jesus dos Bons Passos, como relata em seus escritos o memorialista Serafim Santiago. No entanto, por mais que as expressões qua- resmais se mantenham no eixo procissão-peni- tência, cada região tem um adendo particular. Por exemplo, o isolamento das regiões Norte e Centro-Oeste das outras áreas do Brasil até o início do século 20 fez cada uma adotar modos próprios na manutenção da devoção popular. Em Goiás, as pessoas se deslocam das zonas rurais à cidade grande para participar dos feste- jos. Ali o que atrai não é só o aspecto religioso, mas o histórico, gastronômico e ecológico. Tudo isso faz parte da tradição que ajuda na manuten- ção de práticas como Procissão do Fogaréu e dos Passos que, desde 1745, cultua o Cristo sofredor. Por fazer parte da vida do povo brasileiro e por reforçar a construção da identidade de determinados grupos, toda manifestação reli- giosa pública torna-se expressão de uma cultu- ral local e é formada pela comunicação de um imaginário religioso de forte presença católica, mesclado com religiões de matrizes africana e até mesmo indígena. Até o mais simples badalar de sinos, no pe- ríodo quaresmal, é sinal de vivência de uma cultura cheia da esperança de que o sofrimen- to, identificado com o sofrimento do Cristo, pode ser superado e transformado. Procissão do fogaréu Abril 2019 | Cidade Nova | 13