Catálogo Cine FAP Segundo Semestre de 2018 | Page 6
Trechos de: “Barravento, Glauber Rocha , 1962, alienação versus identidade ”, por Ismail
Xavier.
Em: http://www.revistas.usp.br/discurso/article/view/37890/40617
[...]As declarações de muitos críticos e a própria posição de Glauber Rocha na
época da realização do filme nos sugerem uma interpretação de Barravento que se alinha aos
termos do letreiro inicial. ‚Em Barravento encontramos o início de um gênero, o ‘filme negro’:
como Trigueirinho Netto em Bahia de Todos os Santos , desejei um filme de ruptura formal
como objeto de um discurso crítico sobre a miséria dos pescadores negros e sua passividade
mística‛, dizia Glauber em 1963, no Revisão Crítica do Cinema Brasileiro . Luiz Carlos Maciel:
‚ Barravento revelou a preocupação fundamental de Glauber com a alienação religiosa do povo
brasileiro. Nele, as crenças religiosas dos pescadores de uma praia da Bahia são o grande
obstáculo para a luta de libertação do jugo econômico a que estão submetidos. São as crenças
que impedem a rebelião. São elas que impedem a humanização‛. Barthélémy Amengual: ‚Ainda
em 1962 o cinema político tem idéias simples e claras: o bem é a razão, a solidariedade, a
consciência de classe; o mal é o irracional, a religião, a tradição, a resignação. Barravento
termina com a imagem de um farol erguido como símbolo político: luz, poder e justiça
prometida aos trabalhadores se eles se conscientizarem de sua força e de sua unidade‛.
[...]Retomo estes dados para interpretar a fórmula de Glauber – ‚Godard
apreendendo o cinema, aprende a realidade‛ – e situar esta ideologia da ‚apreensão‛ –
correlata à idéia do cinema como ontologia – e seu papel articulador no confronto dos
conceitos (realidade brasileira, revolução, cinema de autor) e a prática cinematográfica. Prática
centralizada em Barravento , em 1962, filme que, ao seu modo, não tem ‚centro fixo‛; filme
onde a narração, contraditória, é como Firmino, oscilando nos seus valores, de modo a ‚imitar‛
a personagem e produzir uma incorporação da lógica dos pescadores, dominante aqui e ali,
numa convivência sui generis com a lógica da crítica social.
[...]Como o projeto é revolucionário-conscientizador, a crítica em nome da
mudança exige uma pedagogia que trace percursos claros na análise, de fora, da consciência
(ou da forma de cultura) marcada pela ‚alienação‛. Mas, simultaneamente, o ‚cinema é
ontologia‛, e o estilo do discurso não pode se deixar levar totalmente pelo impulso explicativo
que separa, define limites claros entre sujeito e objeto. Na sua textura deve abrigar também a
‚visão de dentro‛, dar expressão àquilo que emana do mundo, da realidade a ‚apreender‛, ou
seja, desta consciência (ou desta cultura) submetida à crítica. A recusa da separação define um
jogo de contaminações do narrador pela perspectiva do narrado, cria um espaço de identidade
que impede o fechamento da questão. Neste jogo, a consciência ‚alienada‛ não só explica
(como objeto), mas também se exprime (como sujeito), embaralhando a lição proposta pela
crítica. Com estas características, o discurso de Glauber afasta-se do didatismo e das exigências
de clareza próprias ao projetos de ‚cultura popular‛ que lhe são contemporâneos.
Na lida com os imperativos do engajamento e dentro da sua escassez de meios,
Barravento propõe soluções estilísticas que já esboçam uma complexidade de certo modo
caracterizadora do trabalho de Glauber Rocha em toda década de sessenta. Os postulados do
‚cinema de autor‛ (que exige liberdade) articulam-se a uma proposta de militância político-
ideológica de efeitos imediatos, num contexto de reinvindicações pela reforma urgente da
sociedade brasileira. Neste esforço de síntese, localiza-se talvez a raiz da multiplicidade de
movimentos e das tensões detectáveis nos seus filmes.