Catálogo Cine FAP Segundo Semestre de 2018 | Page 14
Trechos de: “Envolto nas Sombras”, por Filipe Furtado.
Íntegra: http://revistacinetica.com.br/home/envolto-nas-sombras/
Há um desentendimento na apreciação no cinema de Kiyoshi Kurosawa que
nasceu de ele chamar a atenção pela primeira vez junto ao cinéfilo ocidental em meio ao
boom de interesse pelo cinema de horror japonês no fim dos anos 1990. Quando um
cineasta contemporâneo se notabiliza pela produção de filmes de gêneros populares, logo
se assume que se trata de algum tipo de revitalizador de formas. Mas a verdade é que
Kurosawa não é um cineasta especialmente interessado em narrativa ou gênero, assim
como Shinji Ayoama – o cineasta japonês ao qual ele mais se aproxima e, não por
coincidência, outro ex-aluno do crítico e professor Shigehiko Hasumi. O interesse maior de
Kurosawa é de localizar em formas populares um sentimento de desarranjo.
De certa forma, tanto Kurosawa como Ayoama retomam a tradição do cinema
novo japonês que também nasceu da indústria de filme B local, mas com a agressividade
que lhe era característica substituída por uma inquietação constante. Se a grande maioria
dos filmes de Kiyoshi Kurosawa, mesmo os mais naturalistas como Sonata de
Tóquio (2008), está sempre prestes a sugerir um elemento sobrenatural, é justamente
porque a sensação de desconforto e o mistério de um fora de campo nem sempre
reconhecível servem perfeitamente a este sentimento de desarranjo. Existe muito dos filmes
produzidos por Val Lewton no cinema de Kurosawa: é sempre como se, envolto em
sombras, o desconhecido anunciasse um mal terrível e essencial que já estava ali antes da
projeção, pronto a envolver os homens. No melhor dos filmes de Kurosawa, Pulse (2001), o
homem literalmente desaparece na sua própria solidão até que a própria existência do
mundo seja posta em questão.
[...] Pulse é o filme chave da obra de Kurosawa e, por coincidência, aquele que
mais se assemelha à produção média de horror local (com direito inclusive a
um remake americano medíocre), com uma ideia a principio bem básica em torno de uma
espécie de site de internet assombrado, mas que se revela a cada vez que uma nova
sequência expande seu escopo, até que uma existência insignificante abra espaço para um
mundo todo a desaparecer. Pulse promove o improvável casamento entre Michelangelo
Antonioni e Yasujiro Ozu, um filme cujo peso é construído a partir da exploração
arquitetônica que extrai da sua Tóquio esvaziada um sentimento de desolação, como se a
violência do desenlace esvaziado de O Eclipse contaminasse todo um longa-metragem,
desde suas externas iniciais, revelando um trabalho forte em isolar cada ator dentro do
quadro e reforçar uma desconexão entre corpo e arquitetura (o passeio de carro por uma
Tóquio abandonada próximo ao fim do filme é certamente um dos momentos mais
perturbadores do cinema contemporâneo). Uma das boas sacadas do filme é justamente
um uso deliberado do transporte público para reforçar o sentimento de isolamento,
primeiro numa viagem de ônibus e depois encenando uma das sequências chave do filme
num metrô fantasma. Muito se viu Sonata de Tóquio como excursão de Kurosawa pelo
território do drama familiar à Ozu, mas a conexão entre os dois cineastas sempre esteve
muito aparente e Kurosawa, bom estudante, revela um gosto por um design de espaço, em
particular na ênfase em linhas verticais, derivado do mestre japonês que, quando
combinado com o trabalho de movimento de câmera, garante que cada locação funcione
como um verdadeiro caixão encerrando cada personagem.