Catálogo Cine FAP Segundo Semestre de 2018 | Page 10
Trechos de: “Geometria da Força – Simone Weil e Abel Ferrara”, por Tag Gallagher.
Íntegra: http://www.contracampo.com.br/86/artgeometriadaforca.htm
Consequentemente, os melhores momentos de Ferrara são seus momentos
mais estilizados. Ficamos com a impressão de idéias entusiasmadamente trabalhadas por
alguém cuja suprema alegria é fazer cinema. Em China Girl (idem, EUA, 1987), sua produção
preferida, ele estende quase ao filme todo o alto tom de estilização encontrado em uma
das melhores cenas de Sedução e Vingança , em que quatro estupradores rodam de forma
demoníaca em torno de sua presa com um brio ritualístico, com suas sombras precedendo-
os. Como nos filmes de Murnau, a escrita cinematográfica em abstrato tem algo da riqueza
da música em abstrato. Assim, superfícies geométricas, texturas, cores, luzes e sombras
tendem a mitificar qualquer situação, como acontece com Murnau, Eisenstein ou Ford. Os
planos de Ferrara são compostos com uma geometria consciente, inventivamente
equilibrado em linhas internas, planos e ângulos, sempre para atingir algum efeito
expressivo, sempre com deleite para o efeito fotográfico de profundidade
limitada, sfumato , objetos em primeiro plano, pedaços de luz brilhante, sombras passando.
Um plano de uma rua pode ter um hidrante como arco de proscênio; como em Sirk ou
Ford, objetos impõem o mundo com que nos relacionamos e contra o qual os personagens
lutam. Os objetos podem fazer com que nós mesmos nos tornemos objetos, coisas. Todos
os padrões são inimigos em China Girl ; a sociedade é estruturada tão rigidamente quanto
as grades das ruas em Little Italy e Chinatown. Assim, qualquer situação genérica é
estilizada: os caras ficam fazendo pose, as facas giram, as gangues tomam as tuas
como corps de ballet . Todos se vestem de preto na discoteca, exceto os dois rebeldes, os
iconoclastas, Tony e Tyen, os adolescentes Romeu-e-Julieta em roupas brancas, destacados
– da mesma forma com que Jean Renoir chama pela primeira vez a nossa atenção para Nini
em French Cancan (idem, França, 1954) – não apenas para nos fazer prestar atenção nos
personagens, mas para criar empatia com eles, entrar no mundo da história do filme com
eles, onde, de fato, encontraremos esses jovens cheios de empatia (e nós mesmos, numa
certa medida: um personagem de cinema sendo um locus de emoções) constantemente
ameaçados por estruturas geométricas, pela força do olhar de outro personagem em
direção a eles, pela força da câmera se movimentando para perto deles, pela força de
nosso próprio olhar, o que faz com que partilhemos a auto-consciência que eles têm de sua
situação.
[...]As sombras que perseguem transformam as pessoas em figuras, pedaços
de si mesmos, vampiros. Uma pessoa em vôo cego na vida, outra em cega perseguição
pela glória erótica. Eles passam por piscinas de nada negro ou iluminação encharcada,
alternadamente ganhando e perdendo, sem outro propósito. Luz e escuro não indicam
bem e mal (e o alívio cômico é monstruoso); pois Ferrara não é maniqueísta, ele está no
sétimo círculo do inferno. Então a luz transtorna e a sombra esconde. Todos se eriçam com
esperma e perfume. Mas a luxúria é tão raramente satisfeita, até entre aqueles protegidos
pela armadura... "da ilusão, embriaguez ou fanatismo" (Weil), que o desejo normalmente é
dor, tortura e loucura. A maior parte dos heróis de Ferrara posam se masturbando, e, ao
contrário da santidade imantada do prazer de Melanie Griffith ou da libidinosa atração dos
amantes em China Girl, eles se masturbam sadística ou masoquisticamente – reencenando
neste campo também as vitórias e derrotas nas planícies de Tróia.