Catálogo Cine FAP Primeiro Semestre de 2017 | Page 15
Trechos de: “Elle”, por Isabela Boscov.
Íntegra: https://veja.abril.com.br/blog/isabela-boscov/elle/
Quando vi A Professora de Piano, no comecinho de 2002, achei que seria impossível
haver um emparelhamento mais infernalmente sensacional do que aquele – o de Isabelle Huppert, a
atriz que não tem medo de nada, com o austríaco Michael Haneke, o cineasta que não tolera
hipocrisias e sempre vai pegar onde dói mais. Em A Professora de Piano, Isabelle tira cinco
minutos, antes do jantar, para ir mutilar seus genitais com uma gilete no banheiro, e entra numa
relação masoquista doentia, e ultra-erótica, com um aluno. Não posso imaginar outra atriz que teria
a coragem de encarar sem qualquer reserva uma personagem com essa. Exceto pelo fato de que ela
existe: é a própria Isabelle, quatorze anos mais velha e ainda mais destemida, que agora achou um
cineasta ainda mais afrontador e confrontador com o qual trabalhar – o holandês Paul Verhoeven,
que nunca encontrou uma perversão (de qualquer ordem, não só sexual) que não quisesse examinar
mais de perto, nem um pudor que não quisesse ultrajar e, por garantia, pulverizar.
Verhoeven sempre foi até as últimas consequências – na violência, em Robocop; no
sexo (com violência) em Instinto Selvagem; no sexo como mercadoria, no pouco apreciado e sempre
digno de revisão Showgirls; na estupidez militarista e da supremacia racial, em Tropas Estelares; na
corrupção dos movimentos de resistência, em Vingador do Futuro. E reparem que fiquei aí só na
fase americana e de ótima bilheteria da carreira dele (Verhoeven filma que é uma coisa, e seus
filmes sempre foram também diversão barulhenta, corrosiva e bombástica). A fase holandesa,
igualmente magnífica, tem coisas de arrepiar os cabelos. E, agora, depois de dez anos oficialmente
fora da ativa desde o fabuloso – e holandês – A Espiã (ele fez um outro filme nesse meio tempo que
mal obteve distribuição), Verhoeven volta a dirigir, com força redobrada, em Elle, o candidato
francês a uma vaga nas indicações para o Oscar 2017 de produção estrangeira.
[...]Mas talvez, de alguma maneira fundamental, Michèle se dedique a suscitar
reações de agressividade, desprezo, desrespeito e violência contra si porque se compraz nelas, ou as
considera mais limpas e honestas. Quando descobre a identidade do seu agressor, por exemplo,
Michèle faz a última coisa que se imaginaria. Ela é em boa medida indecifrável – e só isso, a
capacidade de Isabelle e de Verhoeven de torná-la infinitamente interessante, já é uma façanha no
cinema de hoje, tão preocupado em ser cordato, apaziguador, correto, moral e conciliador. As
pessoas são abismos, e é um alívio que ainda haja cineastas e atores com coragem para fazer filmes
que não acham necessário resolvê-las, justificá-las, desculpá-las ou melhorá-las, mas que
simplesmente reconhecem que elas são como são, e as abraçam do jeito que são. (Verhoeven tinha
pensado em fazer o filme com Nicole Kidman e dinheiro americano; teria sido um desastre.) Nunca
dou nota para filmes, mas para Elle vou abrir uma exceção e cravar, entre 0 e 10, nota 12.