Catálogo Cine FAP Primeiro Semestre de 2017 | Page 13
uma representação totalizante da sociedade japonesa – há, apenas, alguns poucos e belos planos da
cidade sem rosto em todo o filme. Os focos de seu interesse estão ali, sentados ao redor daquela
mesma mesa: Ryuhei (Teruyuki Kagawa), Megumi, Kenji (Kai Inowaki) e Taka (Yu Koyanagi). Pai,
mãe e seus dois filhos.
[...]Em mundo construído com tanto cuidado para a câmera, é logo perceptível que as
preocupações narrativas de Kurosawa sejam, também, com a imagem: Sonata de Tóquio é um filme
sobre aparências. Assim como percebemos que o ladrão (interpretado por Kôji Yakusho – ator-
fetiche de Kiyoshi Kurosawa) esconde o rosto não por medo de ser reconhecido, mas por dignidade,
o maior problema da perda do emprego não é financeiro, mas sim imagético. Mais importante do
que ter um emprego é gozar de um certo status; é usar terno e gravata. Não à toa, ao aceitar um
trabalho como faxineiro de um shopping center, Ryuhei encontrará um pacote de dinheiro. Em vez
de mantê-lo, ele o devolve à caixa de achados e perdidos do shopping. Mais expressivos do que as
longas filas na central de emprego são, portanto, os planos em que os faxineiros trocam – ao fim do
dia – os uniformes laranjas por ternos; ou o professor que tenta esconder a capa do mangá erótico
que folheia no trem, mas briga com Kenji por estar passando uma dessas revistas dentro de sala de
aula; ou ainda a maneira como o amigo desempregado de Ryuhei programa seu celular para tocar
cinco vezes a cada hora, criando a imagem (para os outros e para si mesmo) de que ele é
requisitado, de que ainda tem um emprego.
Esse apego à aparência constrói, por fim, o discurso central de Sonata de Tóquio: a
necessidade de reiniciar a visão. Após uma descontrolada busca por epifanias em noite passada ao
lado de um estranho, Megumi caminha na praia lentamente, com os olhos fechados. A cena é
tomada pela necessidade de se zerar os olhos, de voltar a transitar no mundo sem se deixar guiar
exclusivamente pelo visível, pelas imagens. É o retorno ao fade. Em um longo travelling,
acompanhamos Megumi em sua cega caminhada. De repente, a aurora ilumina seu rosto e a faz
abrir os olhos novamente.
Por isso a epifania final é, em Sonata de Tóquio, musical. Em sua avaliação para o
conservatório de música, Kenji senta ao piano e toca ―Claire de Lune‖, de Debussy. Mas toca a peça
sem seguir uma partitura, com os olhos dançando no espaço como os dedos administram os claros e
escuros do teclado. Há uma música, e ela não é visual. Por isso mesmo, é hipnótica. É uma
revelação. É com essa sequência maravilhosa – em vários sentidos – que Kiyoshi Kurosawa encerra
sua Sonata. Não pela necessidade moralista de que tudo há de ficar bem, e de que o mundo é regido
por uma harmonia externa em que as coisas voltam, ao fim, a seus lugares. Mas sim porque, quando
o mundo visível se torna por demais insuportável, há sempre a possibilidade de um breve encanto
em uma outra gaveta, um outro lugar, um outro som. E a percepção de que, às vezes, para
enxergarmos diferente o balé de tensões que configura a vida, talvez seja necessário fechar os olhos.