Catálogo Cine FAP Primeiro Semestre de 2016 | Page 9
Trechos de: “Honglândia”, por Ruy Gardnier.
Íntegra: http://www.contracampo.com.br/75/hongsangsoo.htm
Eles caminham na rua, o eixo paralelo ao sentido dos carros; eles se sentam à mesa,
comem e bebem (muito); eles vão para a cama, com resultados sempre muito diversos.
Naturalmente, os eles mudam o tempo todo, de filme a filme e dentro do mesmo filme. Essas são
as linhas mestras com as quais Hong Sang-Soo cria suas obras, uma atrás da outra, com uma
constância que só é superada pela incrível diferença que ele consegue instalar em projetos tão
aparentemente semelhantes. Em apenas seis filmes, numa carreira que começou em meados dos
anos 90 (O Dia em Que o Porco Caiu no Poço, seu primeiro filme, é de 1996), Hong conseguiu criar
um cinema que não parece com nenhum outro no cinema contemporâneo e parece bastante
consigo mesmo: não uma identidade reiterativa e autocomplacente, mas um verdadeiro estilo que
brota da exploração sistemática de um mesmo universo, sabendo de forma impressionante se
reinventar a cada filme e manter seu carrossel rodando.
[...]As frases passam da boca de um personagem para a do outro, situações
diferentes sugerem paralelismos incríveis e irônicos, os protagonistas se vêem tratados da mesma
forma que trataram outros. Houvesse uma ênfase decisiva nisso, estaríamos diante do eterno
maneirismo que persegue o cinema mais recente em sua luta por roteiros espertinhos. Mas nada
disso acontece quando estamos diante de um filme de Hong Sang-Soo: todas essas viradas se
prestam exclusivamente a suprir uma demanda da dramaturgia, jogar os personagens em novas
situações, explorar as relações humanas ali onde elas começam, se desenvolvem e se esgotam.
As musiquinhas de realejo que iniciam e terminam os filmes já denunciam tudo:
estamos diante de uma grande comédia humana em que a indefinição dos encontros, o cotidiano e
a libido dão todas as cartas. Em momentos, poderíamos pensar nos melhores momentos de
Woody Allen, só que sem a necessidade de ficar fazendo piadas a todo instante; poderíamos
igualmente pensar no cinema de desencontros de Eric Rohmer, certamente o cineasta ao qual
Hong parece mais se assemelhar. Mas ainda assim há uma leveza de tom, um mistério nos
personagens, e sobretudo uma instabilidade voraz da narrativa que faz com que as comparações
percam logo sua eficácia, e rapidamente ficamos diante de uma escrita toda própria, uma estética
que parece já ter nascido madura. É um mundo de personagens de trinta e poucos anos, sem
relacionamentos estáveis, profissionais liberais, eventualmente trabalhando com cinema (produtor,
diretor, roteirista, ator, ou até argumentista involuntário), solitários que se encontram com amigos,
são apresentados a belas moças mais ou menos com as mesmas características (trinta anos,
instabilidade de relação, etc.), e com isso vai se tecendo um amálgama de relações e sentimentos
que vira a intriga de cada filme.
[...]O abismo de Hong é o abismo dos encontros fortuitos da própria vida, tão
incrivelmente cheia de acidentes que normalmente é refratária à ficcionalização. Em qualquer um
de seus filmes, a primeira impressão é a de que o destino de seus personagens é tão opaco quanto
o nosso próprio, tão imprevisível quanto o dia de amanhã. A sensação que deriva disso é de uma
força rara no cinema contemporâneo, ou no cinema, ponto: o mundo tal como o experimentamos.