Catálogo Cine FAP Primeiro Semestre de 2016 | Page 19
Precisemos. O cinema está a caminho de tão simplesmente tornar-se um meio de
expressão, isso o que foram todas as artes antes dele, isso o que foram em particular a pintura e o
romance. Após ter sido sucessivamente uma atração de feiras, uma diversão análoga ao teatro
de boulevard, ou um meio de conservar imagens da época, ele se torna, pouco a pouco, uma
linguagem. Uma linguagem, ou seja, uma forma na qual e pela qual um artista pode exprimir seu
pensamento, por mais que este seja abstrato, ou traduzir suas obsessões do mesmo modo como
hoje se faz com o ensaio ou o romance. É por isso que eu chamo a esta nova era do cinema
a Caméra stylo. Essa imagem tem um sentido bastante preciso. Ela quer dizer que o cinema irá se
desfazer pouco a pouco dessa tirania do visual, da imagem pela imagem, da narrativa imediata, do
concreto, para se tornar um meio de expressão tão flexível e sutil como o da linguagem escrita.
Esta arte, dotada de todas as possibilidades, porém prisioneira de todos os preconceitos, cessará
de permanecer cavando eternamente o pequeno domínio do realismo e do fantástico social que
lhe é acordada nos confins do romance popular quando deixarmos de fazer dela o domínio de
eleição dos fotógrafos. Nenhum domínio lhe deve ser interdito. A meditação mais despojada, um
ponto de vista sobre a produção humana, a psicologia, a metafísica, as idéias, as paixões são muito
precisamente de seu interesse. Ou melhor, diremos que essas idéias e visões de mundo são tais
que hoje somente o cinema pode dar conta delas; Maurice Nadeau dizia num artigo da Combat:
“Se Descartes vivesse hoje, ele escreveria romances.” Eu peço desculpas a Nadeau, mas hoje já um
Descartes se trancaria no seu quarto e com uma câmera 16 mm. e película escreveria o discurso do
método em filme, pois seu Discurso do Método seria tal hoje em dia que somente o cinema
poderia convenientemente o exprimir.
[...] Os roteiristas que adaptam Balzac ou Dostoiévski desculpam-se pelo tratamento
insensato que dão às obras a partir das quais eles fizeram seus roteiros, alegando certas
impossibilidades do cinema em dar conta de conteúdos psicológicos ou metafísicos. Em suas mãos,
Balzac vira uma coleção de gravuras, onde a moda tem mais importância, e Dostoiévski de repente
se assemelha aos romances de Joseph Kessel, com a embriaguez russa nas boates noturnas e as
corridas de troïka na neve. Ora, essas interdições devem somente à preguiça de espírito e à falta de
imaginação. O cinema atual é capaz de dar conta de qualquer tipo de realidade. O que nos
interessa no cinema hoje é a criação dessa linguagem. Não pretendemos refazer documentários
poéticos ou filmes surrealistas toda vez que possamos escapar das necessidades comerciais. Entre
o cinema puro dos anos 1920 e o teatro filmado, existe lugar para o cinema que se liberta.
O que implica, entenda-se bem, que o roteirista faça ele mesmo seus filmes. Ou
melhor, que não existam mais roteiristas, pois num tal cinema essa distinção entre autor e
roteirista não tem mais sentido. A mise en scène não é mais um meio de ilustrar ou de apresentar
uma cena, mas uma verdadeira escritura. O autor escreve com a câmera como o escritor escreve
com a caneta. Como é que nesta arte, em que a banda visual e sonora se desenrola,
desenvolvendo-se através de uma história (ou sem história, isso pouco importa) e de uma certa
forma, de uma concepção de mundo, poderíamos fazer diferença entre aquele que pensou a obra e
aquele que a escreveu? Imagina-se um romance de Faulkner escrito por alguém senão Faulkner?
E Cidadão Kane funcionaria noutra forma exceto aquela a qual Orson Welles lhe deu?
[...] Contudo é impossível que o cinema não se desenvolva. Essa arte não pode viver
com os olhos voltados para o passado, remoendo lembranças, nostalgias de uma época encerrada.
Seu rosto já está voltado para o futuro e, tanto no cinema como fora dele, não há outra
preocupação possível exceto o futuro.