Catálogo Cine FAP Primeiro Semestre de 2016 | Page 14
Trechos de: “A Domesticação à Base da Liberdade”, por Marcelo Miranda.
Íntegra: http://www.contracampo.com.br/94/arttomiranda.htm
O mundo dos festivais ocidentais de cinema descobre Johnnie To a partir de 2005. É
o ano em que Eleição – O Submundo do Poder compete pela Palma de Ouro no Festival de Cannes.
E é o ano em que o cineasta recebe olhares curiosos de diversas partes do mundo que
permaneciam alheias à prolífica produção deste realizador de Hong Kong. Os downloads de seus
filmes disparam nas comunidades virtuais, a cobrança para que distribuidoras o lancem nos
circuitos locais aumenta e a curiosidade por cada novo trabalho é proporcional ao deleite com que
são recebidos quando finalmente vistos (por vias oficiais ou não). Daquele seminal 2005 em diante,
To vai aparecer em todos os outros grandes eventos de cinema do mundo – em Veneza, com Mad
Detective (2007 – em parceria com Wai Ka-fai) e Exilados (2006); em Berlim, com Sparrow (2008);
de volta a Cannes, tanto na mostra competitiva com Vengeance (2009) quanto em seleções
paralelas, exibindo Eleição 2 (2006) e Triangle (2007 – em parceria com Tsui Hark e Ringo Lam).
Mudou To ou mudaram os festivais? Coincidência ou não, é nesta fase que o cinema
dele se apresenta mais “domesticado” – e aqui não se quer colocar nenhum caráter pejorativo ao
termo. Se até 2005 a estética de To se baseava num fluxo contínuo de ação e reação, com a câmera
quase sempre captando o que era mais plausível de captar dentro do espaço, sem com isso parecer
que a câmera soubesse onde deveria estar (pensemos na sequência final de A Hero Never Dies, de
1998), o To pós-Eleição vai deixar muito mais evidente a mise en scène: a movimentação dos
corpos estará mais “bailada”, os enquadramentos serão milimetricamente construídos para
aproveitar ao máximo o que permite o formato scope, os atores estarão muito mais dependentes
de marcação, as coreografias de lutas e tiroteios vão aparentar uma correção visual bem menos
anárquica. Será – buscando aqui as definições de Rogério Sganzerla – uma câmera muito mais ideal
do que possível, um tipo de cinema mais “limpo” do que “sujo”, uma disposição de elementos
bastante mais explícita na medida em que surjam as necessidades e possibilidades do quadro.
[...] É na continuação do filme que To demonstra muito de seu modo de trabalho.
Mesmo que permanecendo dentro das “regras” criadas por ele mesmo para o
primeiro Eleição(nada de tiros, ênfase nas negociações e trapaças políticas, personagens que vão e
vêm), Eleição 2 – A Tríade se sustenta menos nos meandros das artimanhas pelo controle da máfia
de Hong Kong do que na trajetória do protagonista Jimmy Lee – o que se vê, de fato, é uma
simbiose entre os dois temas do filme, um alimentando o outro. E, disso, To entrega algumas das
cenas mais marcantes de todo o seu cinema. Transformando a morte num ritual de dolorosa
penitência (a quem provoca e a quem é vítima), o diretor faz dos constantes instantes de
assassinato de Eleição 2grandes marchas fúnebres, via uso da música, da câmera que passeia pelas
imagens com muita calma e da própria face de quem está na tela. O filme se torna um
impressionante acúmulo de violência, algumas de um barbarismo primitivo (exemplo máximo: a
cena dos cachorros). O inferno em Eleição 2 é bem ali, em Hong Kong.