Trechos de:“ A Luz Esquecida”, por Pedro Henrique Ferreira. Íntegra: http:// revistacinetica. com. br / home / la-sapienza-de-eugene-green-franca-2014 /“ A fábrica é a nova catedral”, diz o arquiteto Alexander( Fabrizio Rongióne), na ocasião de uma premiação. Ela organiza tudo à sua volta, inventa o espaço, dá a cada coisa o seu lugar na mesma medida em que se adequa ao espaço à sua volta. Nas inúmeras discussões sobre arquitetura de La Sapienza, o célebre arquiteto defende a funcionalidade da construção urbanística, sua monumentalidade e sua adequação natural ao ambiente. Seguidor dos princípios arquitetônicos modernos, o protagonista deste novo longa-metragem de Eugène Green passa por uma crise de inspiração que é também uma crise de consciência sobre o sentido e a ética do próprio fazer artístico. Representante de um conjunto de valores bastante contemporâneos, Alexander resolve partir em uma jornada acompanhado de sua esposa, uma estudiosa do comportamento humano, refazendo a trajetória de vida do arquiteto Francesco Borromini( por quem nutre uma certa obsessão e a quem o filme paga tributo), para, mergulhando no universo de um dos pilares fundadores mais ignorados da arquitetura barroca, tentar encontrar este algo que lhe falta. Ou seja, algo que faltaria a toda a arte moderna.
[...] Muito como a arquitetura de Borromini, La Sapienza procede, tanto a nível estético como a nível narrativo, pela serialização obsessiva de poucos elementos. Esses elementos constroem, pela matemática da repetição, uma progressão linear, abruptamente cruzada( rasgada, empurrada) por uma outra trama linear, germinada pela multiplicação de uma outra forma. Construções elípticas, côncavas, espirais e pinaculares se desenvolvem até se cruzarem e se encerrarem, por uma espécie de afinidade seletiva, em uma simbiose harmônica epicentral. O princípio é notável no interior do quadro, pelo exercício de economia cênica e pela composição por espelhamento: se há uma cadeira no canto direito do scope, um equivalente simétrico também se encontra na esquerda; uma mesa à frente terá uma outra como seu fantasma ao fundo. Idem nas operações de decupagem: o vai-e-vem de“ planos-contra-planos” frontais que trocam de lugares e personagens, mantendo a progressão e o ritmo, para então reencontrar os cenários e personagens anteriores; os passos sincronizados de casais que andam juntos e encontram um outro casal que anda junto, também em passos sincronizados; os pés de uma caminhada retornarão em uma outra caminhada; ou a primorosa cena à mesa de jantar( e Bordwell não escreveu que é à mesa de jantar que mais entendemos um diretor e a essência de seu misè en scène?), na troca triangular de olhares entre o célebre arquiteto, sua esposa e o jovem aspirante.
[..] Curiosamente, La Sapienza não dialoga somente com o passado, mas com um punhado de filmes contemporâneos, figurando como uma das respostas possíveis a muitos que apresentam o mesmo drama artístico. São filmes que oferecem desde formas embrionárias e radicais de crise, por exemplo – como a“ viagem à Itália” de Kiarostami em Cópia Fiel, na qual não se apresenta uma reconciliação possível entre o casal( narrativamente), entre o primeiro plano e o fundo de quadro( esteticamente), entre o mundo moderno e o clássico( conceitualmente), e tampouco oferece um remédio ao impasse – ou ainda, no materialismo ascético de Brisseau em A Garota de Lugar Nenhum( 2013) e muitos dos seus longas-metragens mais recentes, nos quais a reconciliação existe, mas é trágica e eventualmente conduz à morte ou ao abandono.