“Diretor fez mais que obra; concebeu uma linguagem”, por Carlos Nader.
Fonte:
https://acervo.folha.com.br/leitor.do?numero=20488&keyword=Carlos%2Cnader&ancho
r=6014703&origem=busca&pd=d7c08079334512fa131e03d84c6c6d05
“A troco de que as pessoas vão ver o trabalho de um cara que só filma gente falando?” Foi
essa a pergunta lançada na minha direção pelo próprio cara, Eduardo Coutinho, em sua
última entrevista filmada.
Esperei por uma resposta triunfante, daquelas que um discurso empolgado emenda na
sequência. Não veio. O cara continuou fazendo a mesma pergunta, a mim e ao éter, num
sinal inequívoco de que ele também achava que sua obra contém um mistério essencial,
irrespondível. “A troco de quê? De quê? É um absurdo, entende? E esse absurdo que me
mantém vivo.”
No começo dos anos 1990, mais de uma década após “Cabra Marcado Para Morrer” -filme
extraordinário que, mesmo que eu discorde, a maioria dos cinéfilos brasileiros considera o
maior documentário já feito no país–, Coutinho achava-se não só relativamente esquecido,
inclusive pelos cinéfilos, mas se sentia também perdido em si mesmo.
“Minha vida não fazia sentido. Tinha criado meus filhos. Casado há 30 anos. Feito um filme há
15. Então é isso que, porra, pude fazer e acabou?”
“Por que não arriscar?”, ele mesmo colocou, quando tinha mais de 60 anos e perto de zero
em dinheiro e prestígio. Em 1997, arriscou “Santo Forte”.
“Filmar gente falando” é só o resumo de uma ópera, obra, que (re)começava plena de risco.
Desafiou cada linha não só do cânone cinematográfico, mas também das próprias rupturas
experimentalistas.
Num só lance de dados, Coutinho aboliu pesquisa, preparação, roteiro, narração visual,
cenário e trilha sonora. A partir daí, a arte imitou a vida. Justamente por perder quase tudo, o
cinema da conversa começou a ganhar um lugar na história do audiovisual. O diretor-
descobridor botou um ovo de Colombo.
O paradoxo desse cinema é que, comparado aos outros, acaba tendo mais, e não menos,
roteiros, cenários, trilhas. Só que brotam posteriores, no coração e na mente do espectador.
Coutinho não integra o seleto grupo de diretores que criaram, para além dos filmes, uma obra.
Sua categoria é mais rara: a do artistas que inventaram uma linguagem.
Claro que teve influências marcantes, como “Shoah”, de Claude Lanzmann, mas nenhum
outro cineasta ousara fundar toda uma cinematografia na palavra viva, fazendo-a evoluir até o
último suspiro.
Nessa fase que começa com “Santo Forte” e termina póstuma com “Últimas Conversas”, cada
trabalho é ao mesmo tempo o pai de uma invenção nova e filho fiel de uma ideia mãe
intransigente. Os nove filmes desse período formam um bloco tão uno e radical que, na minha
cabeça, formam um filme só. O melhor documentário já feito no país.