atómica fevereiro de 2023 | Page 20

DA CINTURA PARA CIMA SOMOS MEIO CHIMPANZÉS

E DA CINTURA PARA BAIXO, HUMANOS

Por: Matilde F. Laranjeira

Em muito se consegue distinguir o Homo sapiens dos restantes símios: da locomoção a uma fala complexa e um cérebro de dimensões superiores, capaz de interagir com um mundo e com outros Homo através de sistemas de crenças inigualáveis. Neste artigo, explora-se a singularidade da locomoção e, como algo que nos parece agora tão insignificante, é na verdade um fator chave do que nos torna humanos.

O bipedismo, ou bipedalismo, é a capacidade de um organismo se deslocar sobre duas patas posteriores, às quais nós, humanos – e portanto, autor e leitor - chamamos pés.

Há diversas teorias que visam explicar o abandono do quadrupedismo e a adoção da locomoção bípede, baseando-se sobretudo em princípios de adaptação ambientais e culturais.

A teoria mais vulgar, e um dos primeiros modelos explicativos, é a Hipótese da Savana Africana: à medida que a floresta africana, habitat dos nossos antepassados, se alterava drasticamente devido a alterações no clima, os antecessores do Homo sapiens teriam de viajar distâncias cada vez mais longas para encontrar alimento, em zonas com plantas tão altas que apenas de pé se poderiam prevenir contra possíveis ataques de predadores. Esta hipótese caiu em desuso nas recentes décadas. Por um lado, sabe-se que os nossos antepassados, como a Australopithecus Lucy, eram significativamente mais baixos em relação à altura atual da espécie humana, pelo que averiguar a existência de predadores entre as ervas altas se provaria inútil; por outro lado, recentes descobertas revelam que os hominídeos mais primitivos, embora parcialmente bípedes, possuíam membros longos, ainda adaptados a trepar árvores, sugerindo assim que a locomoção bípede terá evoluído nas árvores e não no chão.

Isto leva-nos à Hipótese da Alimentação Postural de Kevin D. Hunt. Este modelo defende que, ainda no topo das árvores, os hominídeos ancestrais se terão parcialmente convertido a uma locomoção bípede para terem acesso a alimentos dificilmente alcançáveis caso mantivessem uma postura quadrúpede, em detrimento do emprego de sistemas bípedes de locomoção para evitar predadores, padrões culturais intraespecíficos ou viajar grandes distâncias. Assim, explica-se a postura bípede parcial como um hábito conveniente em certos hominídeos do passado, como os Orrorin tugenensis. Este comportamento verifica-se em alguns dos nossos irmãos símios, como os chimpanzés e os orangotangos, pressupondo que o bipedismo não terá evoluído como postura facilitadora da locomoção, mas sim da alimentação.

Agora que falamos da adaptação da locomoção ao fácil acesso a alimento, podemos também entrar no pensamento de Owen Lovejoy, criador da Teoria do Provisionamento, uma adaptação do pensamento darwinista à locomoção humana. A teoria afirma que andar sobre as patas posteriores permitia aos hominídeos ancestrais transportarem mais comida de uma só vez (um comportamento evidenciado também em chimpanzés), aumentando as taxas de sobrevivência dos descendentes. Numa sociedade na qual os machos seriam principalmente responsáveis pela recoleção e transporte de alimento e as fêmeas pela proteção da descendência, o bipedismo permitia a passagem para uma cultura monógama, sem necessidade de luta entre machos, em que as fêmeas apenas interagiam sexualmente com um parceiro específico do grupo. O bipedismo surge então como um produto de seleção sexual e proteção das gerações futuras.