As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo | Page 101
sões de todas as partes envolvidas. É errado, ética e politicamente
desastroso, por exemplo, que médicos rejeitem receber uma bolsa
para trabalhar nos rincões e saírem de lá mais ricos em experiência e formação humanista. Ao fazerem isso, agem como elitistas,
imagem sedimentada na população e que eles parecem não fazer
questão de desmentir. Os argumentos que têm apresentado para
rejeitar as propostas são ruins. Não estão sendo bem formulados
e surgem, aos borbotões, sem muita racionalidade.
Não é totalmente certa, por exemplo, a tese de que médicos
só podem funcionar bem se houver infraestrutura adequada.
Na maior parte do país não há infraestrutura médico-hospitalar, mas não é por isso que se deixará a população sem atendimento. A presença do médico num rincão qualquer é valiosa e
o que se pode esperar dele é que seja o construtor da infraestrutura. Os cursos de medicina precisam pensar nisso, escapar da
lógica atual do atendimento, baseada em exames e medicamentos. Estamos muito necessitados de uma medicina pé no chão.
Essa é a perspectiva dos sanitaristas, que estão sempre na vanguarda da saúde pública e vêm muito mais longe, porque são
treinados para isso e porque têm especial sensibilidade. Essa
também é a filosofia do SUS. Médicos distribuídos pelo país poderiam integrar uma medida que se complementaria com mais
recursos técnicos, gestão mais qualificada do sistema e um plano de carreira para os profissionais.
O governo federal é o grande ator das políticas públicas postas em prática pelo Estado brasileiro. Tem poder para dar e vender. Tem poder de agenda e poder de atração. Tem recursos financeiros, quadros técnicos, capacidade de contratar gente e de
mexer em fatores estruturais.
Mas não é porque tem todo esse poder que o governo pode
tudo. Ele não pode, por exemplo, atropelar os interesses e oprimi-los com decisões despejadas de cima para baixo, porque isso
não é democrático e porque não funciona. Sua agenda não pode
II. Depois de junho. Sobre as respostas governamentais
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