Não por acaso, aconteceu, por exemplo, o boom
imobiliário da Barra da Tijuca e a construção de
apartamentos de luxo na Lagoa Rodrigo de Freitas,
após a derrubada da Favela da Catacumba, na década de 1970, que transferiu famílias pobres e carentes para a Zona Oeste, região sem infraestrutura
e bastante longe dos locais de trabalho. Nesse contexto, não resta dúvida que o projeto Favela-Bairro dos anos 1990 representou alguma mudança em
relação à política habitacional excludente dos anos
de 1960 e 1970.
E no desenho dos contrários, tecido e revigorado
em tantos tempos, a paisagem geográfica evidenciava a deterioração da cidade pelo crescimento
urbano rápido e desordenado, a exclusão social,
a precariedade dos serviços públicos, a carência
nas áreas de educação e saúde, o ‘poder paralelo’,
a forte especulação imobiliária associada aos interesses corporativos do capital e a repressão policial truculenta. Os problemas urbanos e sociais da
“Cidade Maravilhosa” se expõem pari passu a um
projeto político que sempre excluiu os deserdados
do sistema e continua reprimindo as manifestações
sociais, como se não existisse o Estado de direito e
a garantia constitucional de respeito às liberdades
individuais e coletivas! Tudo aponta para a quebra
de valores caros à cidadania e o desrespeito à gestão
da “coisa pública”, colocando em xeque o próprio
significado de República.
Nesses tempos inquietantes em que vivemos, pretensamente ahistóricos, defrontamo-nos a cada
passo, a cada momento, com a “cidade partida”,
de Zuenir Ventura, ou “em cada ribanceira uma
nação”, de Chico Buarque. As aceitáveis diferenças
entre pobreza e miséria, segundo os padrões capitalistas e burgueses, estreitaram-se cruelmente durante os longos anos da ditadura militar e prosseguiram, com certas diferenças, na chamada Nova
República. O mundo da favela afirmara-se em uma
atitude de franca negação aos supostos valores civilizatórios do mundo do asfalto.
O que fazer diante de projetos urbanos que ousam
não enfrentar a segregação sócio espacial e optam
por reproduzir a “cidade murada” e a “cidade civilizada” para reinventar a tradição da boa sociedade,
dentro de uma perspectiva militarizada de segurança pública? As sucessivas obras da prefeitura
do Rio de Janeiro celebram a consolidação de uma
modernidade, ainda que tardia. Porém, a liberdade e a própria civilização, no que esta implica em
vitória dos direitos humanos e em assertiva contumaz de humanização do povo, ficam postergadas,
mais uma vez, para o futuro.
Na busca de alternativas à liturgia política oficial
– baseada em uma visão excludente de desenvolvimento, de segurança pública e de reconstrução do
espaço coletivo –, a democratização da urbes carioca representa uma utopia a ser apre(e)ndida enquanto desejo, conforme Jameson . Desejo legível
em filigrana que possibilita refazer o nosso olhar
na perspectiva da inclusão que aproxima e congrega ao invés de exilar muitas pessoas e/ou grupos de
seu próprio lugar.
Até porque a força das armas não poderá, como no
passado, destruir mobilizações sociais e fazer terraplanagem da arena política. Perceber a cidade onde
vivemos como local por excelência de disputas e de
resistências pode oferecer experiências de pertencimento a uma certa tradição cultural que precisa ser
continuamente apreendida e questionada. E, também, permite recuperar o necessário significado
de historicidade que permeia a compreensão desse
lugar para transformá-lo em um espaço de (con)
vivência efetivamente democrático, no qual possamos colher os frutos de tantos plantios de diferentes mãos de todos os dias em diferentes tempos.
É de uma outra visão da cidade do Rio de Janeiro
que tentamos aqui esboçar aos leitores. Uma aventura pelo passado para reconhecê-la como território
que conforma processos identitários..
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