A Capitolina 8, agosto 2014 | Page 26

mini conto

uando se rendeu àquela certeza que se tornou inabalável dentro de si até os últimos dias de sua vida, Pedro sentiu algo que nunca havia experimentado.

A semente daquela ideia, não sabia ao certo quando lhe tinha adentrado a mente. Um pensamento sem importância, que vez ou outra surgia em um devaneio e logo se apagava. Só foi tratar-lhe com importância após alguns fatos que se desencadearam na vida pessoal e profissional ao mesmo tempo, em elevado grau de dificuldade, que quase lhe suprimiram todas as energias; nesse período, a ideia voltou-lhe com força.

Primeiro, passara por uma confusão de sentimentos que o tornaram uma pessoa insegura e amarga. Fora aos poucos se distanciando da família, dos amigos, das pessoas que conhecia, depois das que desconhecia – se afastou, temporariamente, do mundo.

Isolado, em algumas semanas perdeu o ranço do cotidiano. Deixou que os pensamentos da vida anterior se esgotassem com o tempo, até se tornarem lembranças distantes – espectros sem importância de um período perdido no espaço.

Se dedicou em tempo integral – excetuando-se os breves momentos das refeições leves e do descanso agora profundo e revigorante – ao novo e inusitado estilo de vida que iria adotar dali para frente. Aquele momento era apenas transitório; uma passagem, como viria a afirmar tempos depois, ao relatar de forma superficial sua vida pregressa.

Dia após dia a vida seguia seu curso normal, com suas verdades e mentiras, justiças e incoerências, erros e acertos, com seus julgamentos e seus imponderáveis, suas situações extremas e, outras, de pura poesia, com seus vastos por quês e suas insignificantes respostas... na periferia, porquê, no centro de seu universo, Pedro não percebia o tempo passar.

Concatenou ideias e ideais que antes lhe eram tão distantes, tão caros, tão inconciliáveis dentro de si. Do seu passado, decidiu: nada utilizaria, nem cobraria de volta; já não mais lhe pertencia. Viveria melhor assim. Do seu presente, e do futuro, faria o que considerava ser sua missão na terra; os sinais foram irrevogáveis, em seu modo de ver, e sentia não poder se furtar a obrigação.

Quando finalmente concluiu que já tinha seu caminho traçado, decidiu que era o momento de finalizar sua reclusão. Estava tão eufórico e motivado que queria gritar, contar para o mundo quem ele havia se tornado. Não se deu conta, porém, que teve tempo para se preparar para seu novo mundo, seu novo Eu; os outros, não.

Não sabia, nem voltaria a fazer questão de saber, qual era a data no dia em que fez seu retorno à civilização. Encontrou familiares ao mesmo tempo felizes e desconfiados do Pedro que agora se apresentava. Indagavam sobre seu repentino desaparecimento, afagavam-no, tentavam contar-lhe sobre os tempos em que estivera fora, perguntavam por onde andara, o que lhe significava aquela nova aparência – a barba e os cabelos crescidos, as roupas leves e claras –, os modos sutis, o que faria da vida de agora em diante... Nada conseguiam arrancar, a não ser um sorriso gentil, um olhar vago e palavras quase incompreensíveis para os padrões de comunicação interpessoal.

Desapareceu da vista da família tão subitamente quanto da primeira vez, mas não tardou a ser notícia, a aparecer nos programas vespertinos da televisão. Depois, matinais, e assim por diante. Era uma atração, um ser exótico capaz de atrair grandes audiências. Consideravam-lhe o Novo Messias, apesar dos insistentes e extensivos sermões de Pedro refutando o rótulo, mas, como tudo na vida, é preciso simplificar, extrair um traço do todo e usar-lhe como o significado de algo mais complexo, e Pedro não era exceção.

Ainda tentou disseminar seus ensinamentos, sua doutrina, mas se irritou com o modo simplista e sem perspectiva de seriedade de como lhe tratavam. Passou, então, a evitar a mídia. Foi para as ruas e praças. Talvez ali lhe entendessem, não o rotulassem, e prestassem atenção em suas palavras ao invés de tentar criar polêmicas e factoides. Pessoas humildes se reuniam em volta de Pedro, queriam ouvir-lhe, tocar-lhe, buscar ajuda. O tumulto dessas reuniões informais, no entanto, chamou a atenção das polícias dos locais por onde passava. Aos poucos, se cansou do tratamento hostil e das desgastantes noites em celas de delegacias. Desapareceu mais uma vez.

Durante anos, suas pregações atraíram milhares de pessoas no pequeno balcão improvisado onde se instalou em uma cidade do interior do país. Dormia e fazia as refeições nos fundos, em um quadrado de dois metros por dois, onde dispunha de um colchão, uma almofada que servia de travesseiro, um pires e uma coleção de velas que os visitantes lhe traziam. Um pequeno banheiro ficava atrás do balcão. Os moradores se revezavam para trazer-lhe a comida.

Há quem diga que Pedro chegou a realizar alguns milagres, mas nunca comprovado.

Morreu numa madrugada, vítima de tuberculose, sem saber que estava há poucos dias de completar 33 anos.

25 A Capitolina

Por Rodrigo de Zafra Toffolo

Q

Inabalável