Escrituras 8
Os herois dos nossos dias
Harry Potter
Da série de livros de J. K. Rowling, o bruxo escapa da morte diversas vezes, mas, a bem da verdade, ele está sob a proteção de uma 'providência especial"....
Percy Jackson
O semi-deus criado por Rick Riordan é, bom, um semi-deus, o que já é providência especial o suficiente para fugir de todas as feras, centauros e afins.
Mia Thermopolis
A princesa que recusa a realeza pode nem sempre fugir das situações embaraçosas, mas tudo sempre acaba bem na série de Meg Cabot.
Bella Swan
Stephany Meyer criou a garota mais desastrada de Forks, que está fadada a morrer desde que conheceu um certo vampiro, mas ainda assim consegue sobreviver sempre.
desses escritores um aspecto salienta-se de forma irrefutável: todas possuem um herói, centro do interesse, para quem o autor procura de todas as maneiras possíveis dirigir a nossa simpatia, e que parece estar sob a proteção de uma Providência especial. Se ao fim de um capítulo deixamos o herói ferido, inconsciente e esvaindo-se em sangue, com certeza o encontraremos no próximo cuidadosamente assistido e próximo da recuperação. Se o primeiro volume termina com o naufrágio do herói, no segundo logo o veremos milagrosamente salvo, sem o que a história não poderia prosseguir. O sentimento de segurança com que acompanhamos o herói através de suas perigosas aventuras é o mesmo com que o herói da vida real atira-se à água para salvar um homem que se afoga, ou se expõe à artilharia inimiga para investir contra uma bateria. Este é o genuíno sentimento heróico, expresso por um dos nossos melhores escritores numa frase inimitável. ‘Nada me pode acontecer’! Parece-me que através desse sinal revelador de invulnerabilidade, podemos reconhecer de imediato Sua Majestade o Ego, o herói de todo devaneio e de todas as histórias.
Outros traços típicos dessas histórias egocêntricas revelam idêntica afinidade.
O fato de que todas as personagens femininas se apaixonam invariavelmente pelo herói não pode ser encarado como um retrato da realidade, mas será de fácil compreensão se o encararmos como um componente necessário do devaneio.
O mesmo aplica-se ao fato de todos os demais personagens da história dividirem-se rigidamente em bons e maus, em flagrante oposição à verdade de caracteres humanos observáveis na vida real. Os ‘bons’ são aliados do ego que se tornou o herói da história, e os ‘maus’ são seus inimigos e rivais.
Sabemos que muitas obras imaginativas guardam boa distância do modelo do devaneio ingênuo, mas não posso deixar de suspeitar que até mesmo os exemplos mais afastados daquele modelo podem ser ligados ao mesmo através de uma seqüência ininterrupta de casos transicionais. Notei que, na maioria dos chamados ‘romances psicológicos’, só uma pessoa - o herói - é descrita anteriormente, como se o autor se colocasse em sua mente e observasse as outras personagens de fora. O romance psicológico, sem dúvida, deve sua singularidade à inclinação do escritor moderno de dividir seu ego, pela auto-observação, em muitos egos parciais, e em conseqüência personificar as correntes conflitantes de sua própria vida mental por vários heróis. Certos romances, que poderíamos classificar de ‘excêntricos’, parecem contrapor-se ao devaneio modelo.
Nestes, a pessoa apresentada como herói desempenha um papel muito pouco ativo; vê os atos e sofrimentos das demais pessoas como espectador. Muitos dos últimos romances de Zola pertencem a essa categoria. Mas devo assinalar que a análise psicológica de indivíduos que não são escritores criativos, e que em alguns aspectos se afastam da norma, mostrou-nos variações análogas do devaneio, nos quais o ego se contenta com o papel de espectador.
Para que nossa comparação do escritor imaginativo com o homem que devaneia e da criação poética com o devaneio tenha algum valor é necessário, acima de tudo, que se revele frutuosa, de uma forma ou de outra. Tentemos, por exemplo, aplicar à obra desses autores a nossa tese anterior referente à relação entre a fantasia e os três períodos de tempo, e o desejo que o entrelaça; e com seu auxílio estudemos as conexões existentes entre a vida do escritor e suas obras. Em geral, até agora não se formou uma idéia concreta da natureza dos resultados dessa investigação, e com freqüência fez-se da mesma uma concepção simplista. À luz da compreensão interna (insight) de tais fantasias, podemos encarar a situação como se segue. Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de