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Março 2022 | Cidade Nova | 27
rista : “ vi que eu não me adaptava muito a essa coisa de patrão ; desde muito cedo sempre tive essa coisa de produzir , de fazer , eu via que tinha condições de me sustentar . Eu tinha uma máquina de costura , um serralheiro fez um carrinho para mim , tirei os pedais da máquina , fiz uma máquina portátil e ia à casa das clientes . Independente do que eu fazia , meu dia era ‘ X ’. Foi assim que eu sustentei a minha família ”.
Violência recorrente
Tudo parecia começar a se acertar quando Neide perdeu o marido , alvejado pela polícia . “ Ele foi assassinado pelo simples fato de ser negro e não ter uma carteira profissional no bolso para provar que era trabalhador . Na época da ditadura militar , se você não provasse que era trabalhador , era enquadrado como vadiagem . O policial disse que meu marido era suspeito e não obedeceu à voz de comando . Mas quando a gente chegou para ver o corpo dele que estava no chão , ele tinha levado tiro à queima-roupa , ele não levou tiro nas costas .”
Mark era muito pequeno quando tudo aconteceu . Vinte anos depois , a violência do entorno faria com que ele repetisse a história do pai , deixando órfãos dois filhos . Neide não podia escapar de tamanhas e repetidas dores , mas corria . Corria pelas ruas do Capão Redondo em busca da alegria rara que o esporte lhe proporcionava .
Quando as amigas do bairro viram na TV que ela participaria da tradicional Corrida de São Silvestre , quiseram treinar também . Assim formou-se um grupo de mulheres atletas da periferia : “ a gente treinava de madrugada , chegava em casa , jogava uma água no corpo , saía comendo pela rua , correndo para pegar o busão e ir trabalhar ”.
Rua de brincar
Após a morte de Mark , amadureceu entre elas a ideia de fazer algo para que crianças , adolescentes e jovens do bairro tivessem a oportunidade de trocar o tráfico pelo esporte . Mais do que nunca , Neide queria encontrar um jeito de concretizar aquele sonho que o próprio Mark havia compartilhado com ela antes de partir .
“ Essas mulheres falaram : a gente te ajuda . Comece a atender nossas meninas .” Neide era presidente da associação dos moradores e se lembrou de uma política pública municipal que permitia transformar determinadas ruas em espaços de desporto e lazer . Providenciou então toda a documentação necessária e , algum tempo depois , transformou a Rua da Morte , como era até então conhecida , em Rua de Brincar .
“ Tem amarelinha para você pular , um campinho de futebol , tabela de basquete , pista de atletismo para você correr ...”, conta Neide , emocionada , lembrando-se de que brincar na rua foi apenas um sonho distante em sua infância .
Todo sábado , Neide dava aulas de atletismo para a criançada . Mas a demanda aumentou tanto que foi necessário criar uma ONG independente , só para essa finalidade : assim nasceu oficialmente o Vida Corrida . De 1999 a 2009 , o projeto manteve-se com doações de mulheres ricas para quem Neide trabalhava como costureira . Com o tempo , passou a participar de concursos , recebeu prêmios e chamou a atenção de grandes patrocinadores .
Desde 2016 , o Vida Corrida tem um contrato de patrocínio com a Nike , por tempo indeterminado . O dinheiro vai integralmente para a manutenção das atividades , porque Neide continua trabalhando voluntariamente no projeto . Até oito anos atrás , ela cuidava da ONG diariamente até 10 horas da manhã e depois saía para garantir seu sustento como costureira . Essa rotina só mudou quando um grande empresário se ofereceu para “ depositar seu tempo ”, de modo que ela pudesse se dedicar integralmente ao projeto .
Assim , cheia de gratidão , Neide Santos segue firme em sua corrida de obstáculos , com aquele brilho no olhar de quem sabe ser verdadeiramente livre : “ eu nasci para servir , eu nasci para cuidar . Eu descobri isso . É algo que me faz feliz ”.
Saiba mais obre o projeto Vida Corrida no site : http :// vidacorrida . org . br /
Arquivo pessoal
A atleta e educadora Neide Santos , fundadora do projeto Vida Corrida

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