1964 As armas da política e a ilusão armada | Page 106

democracia que estamos construindo. Neste desafio, inclui-se o passar a limpo o passado: revelar a verdade dos fatos, responsabilizar os que cometeram crimes durante a ditadura e os que, hoje, com absurda desfaçatez, fazem o elogio das práticas ditatoriais, tortura incluída, debocham dos torturados e discursam contra a democracia e o Estado de direito. O processo democrático e o reformismo social das últimas décadas não tiveram força para valorizar a política, melhorar o funcionamento do sistema político e difundir cultura democrática de modo amplo. Os partidos deixaram de atuar como usinas de cidadania; passaram a olhar exclusivamente para o poder. Abandonaram a sociedade. A própria sociedade civil não adquiriu maior densidade política: passou a ser um grande estacionamento de interesses sem maior ímpeto político geral. Ninguém mais se voltou para a educação política dos cidadãos. Lá atrás, na luta contra a tortura, pela anistia política e pelas eleições diretas – momentos emblemáticos da transição –, os democratas estavam juntos, procuravam articulação e se orientavam pelo desejo comum de ver o país reorganizado. Não escondiam suas diferenças, mas davam mais valor ao que os aproximava do que ao que os afastava. Hoje, os democratas se deixaram corroer pelo que os separa, não conseguem organizar qualquer agenda suprapartidária e assistem, cada qual no seu canto, ao país avançar meio fora de controle e sem coordenação. Oportunidades se perdem. Deste ponto de vista, a transição democrática que nos afastou do legado autoritário foi incompleta. Não teve potência para valorizar a política, qualificar a “classe política”, aperfeiçoar a representação e sedimentar uma cultura democrática na sociedade. Em decorrência, muitos brasileiros passaram a “odiar” a política, ou a se desinteressar dela, a vê-la como pouco importante. Parcela expressiva da sociedade não aceita que as melhores saídas passam pela política, pelo jogo da representação, pelos tempos flexíveis da democracia. Muitos olham esperançosos para líderes benfeitores e salvacionistas impregnados de magnetismo pessoal e biografias heroicas. As próprias lideranças políticas 104 1964 – As armas da política e a ilusão armada