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Sociedade

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“Homens que fazem sexoo com homens não podem doar sangue”. Foi com base nesta pretensa que Bruno Gomes d’Almeida foi impedido de doar sangue, no passado dia 23 de janeiro, após esperar 3 horas numa fila, no posto fixo do IPST em Lisboa. Efetivamente, em meados de janeiro, simultaneamente à pandemia que se encontrava no seu pico máximo, também o IPST afirmava possuir baixas reservas de sangue, com algumas a durar apenas por mais 7 a 10 dias. Mas então, se assim era e se estávamos num momento de desespero, em que os apelos para que as pessoas doassem sangue se espalhavam ao máximo pelas redes sociais, como pôde tal acontecer?

De facto, penso que, para a maioria, tal acontecimento se deve revelar como assoberbante, algo ridículo e bárbaro, uma vez que é do senso comum que nada separa ou difere o sangue de um homem, neste caso, homossexual ou bissexual, do sangue de um homem heterossexual. Pelo menos deveria ser essa a premissa inicial, aquela que, inclusive, está prevista na lei desde 2016, mas que, no entanto, acaba por muitas vezes não se verificar. Com efeito, a lei prevê que, no momento da doação de sangue, ninguém deve ser discriminado com base na sua orientação sexual, sendo que os únicos cuidados a possuir são transversais ao género do dador e prendem-se com parceiros de portadores de infeção VIH e indivíduos com novo contacto ou parceiro sexual. Conquanto isto, pela média de 3 casos por semana que a ILGA recebeu nas últimas semanas de janeiro e nas primeiras de fevereiro, percebemos que a prática não se coaduna com a teoria, com muitos homens homossexuais e bissexuais a serem, até, retirados da lista de dadores, atividade que- até ao momento da “revelação” - assim digamos - praticavam sem qualquer problema ou restrição.

a lei prevê que, no momento da doação de sangue, ninguém deve ser discriminado com base na sua orientação sexual

Não obstante, a verdade é que não é a primeira vez que tal acontece. Não digo isto de forma leviana, mas quase que parece uma prática recorrente entre os profissionais de saúde, com situações semelhantes a verificarem-se em 2020 e em 2019 e, inclusive, mencionadas no Inquérito LGBTI Europeu, onde apesar de os progressos entre 2012 e 2020, no que ao reconhecimento e harmonização dos direitos LGBTI, serem notórios, se menciona que há uma necessidade de políticas públicas que incidam e reforcem estes direitos em três diferentes áreas, sendo uma delas a “clarificação da não discriminação na doação de sangue”. Este é um problema, então, bastante presente na sociedade portuguesa - é algo que precisa, de facto, de ser batalhado e que, a meu ver, pode ser resultado ainda de algum estigma, uma reminiscência de uma sociedade mais conservadora que, apesar das melhorias, continua a percecionar os homossexuais como um conjunto de estigmas e preconceitos que teimam em desaparecer. Prova disso está no facto de que ainda não é seguro para muitas pessoas LGBTI expressarem aberta e seguramente a sua relação, com cerca de 57% dos mesmos a afirmar que evitam frequentemente ou sempre andar na rua de mãos dadas com o respetivo parceiro. Para além disso, no que a questões médicas e fisiológicas diz respeito, um homem homossexual ou bissexual é visto como alguém com maiores comportamentos de risco, podendo ser até percecionado como alguém possivelmente doente, muito fruto dos casos de VIH/ SIDA que, nos anos 80, começaram a aparecer em Portugal e que, desde aí, são continuamente associados a este grupo. Porém, também tal pode ser refutado, já que, desde os anos 80, muito se alterou e o risco de contrair este vírus, segundo o relatório de 2020 do Programa Nacional para a Infeção VIH/ SIDA, é superior entre a população heterossexual, que totalizam cerca de 57,8% dos casos. A muitos homens homossexuais ou bissexuais é, inclusive, pedido um ano de abstinência antes de fazerem uma doação de sangue, mesmo que estes tenham tido apenas um parceiro durante todo esse tempo. Fica, assim, como que subentendido, que um homem heterossexual pode ter quantas parceiras sexuais quiser durante esse tempo, sem que quaisquer constrangimentos lhe sejam apresentados, ao passo que o homem homossexual ou bissexual será sempre aquele entendido como o promíscuo e com os comportamentos lascivos, ainda que tal não seja o caso.

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Por Ines Simoes

Uma Quase Barbarie

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